Neste que fora anunciado por Jonas Mekas como sendo o seu derradeiro filme - ainda que no
IMDB esteja já indicado para 2013 o lançamento de um novo título - estão presentes duas ideas-força de modo algum novas no seu cinema, mas que, de maneira quase incomunicável, ganham aqui uma nova plenitude. A primeira ideia é, inevitavelmente, a de memória. Como acontece em praticamente toda a sua obra (por ex. "Walden" e "As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty"), o autor mostra fragmentos de filmes que foi filmando ao longo da sua vida. Mais
com do que
sobre as imagens, qual sinfonia do "eu" e do "nós", Mekas acrescenta a sua voz. Uma voz "cantada" pelo sotaque lituano, de que nunca se livrou desde que se mudou para os Estados Unidos nos anos 50, e plena do "bom grão" que os seus 90 anos de idade lhe emprestam. As pequenas impressões de Mekas sobre a vida, a sua vida que no fundo não é tão diferente da nossa vida, são ditas sobre as imagens, mas de modo algum "as dita" ou nos são "ditadas".
A palavra aqui, na sua rugosidade própria, no seu ritmo não-forçado, é parte instrumental na grande sinfonia de imagens que se vão sucedendo, mimando a fluência própria da memória. Não, Mekas adverte: "Isto são só imagens. Uma realidade de imagens", "as memórias não interessam a ninguém". Pois sim, mas ao dizê-lo Mekas não nega que estas imagens, que são, de facto, "só imagens", ou melhor, por exactamente serem "só imagens", participam de algo maior, por exemplo, de uma ideia de comunidade. Com efeito, essas imagens que são só imagens mostram-nos
flashes de um mundo que (também) nos pertence - e, contudo, tudo é e permanece "privado" aqui. Esta é a essência da religiosidade de Mekas: pôr as suas imagens a falar, ou melhor, a cantar a linguagem universal da memória.
Disse repetidas vezes que esta era um filme "só de imagens". Contudo, dizer "só" isso é dizer pouco, porque, como o cineasta que monta o filme para si, por si, quando toda a gente dorme, este é também ou acima de tudo um filme de "imagens sós".
Outtakes, para ser mais exacto. E esta é a segunda grande ideia-força que comanda sem comandar a acção de Mekas na montagem - acção que, como ainda não tinha visto num filme seu, este nos mostra em planos intercalares reminiscentes de
Histoire(s) du cinéma, daquele que é, para muitos e justamente, "o Jonas Mekas europeu", Jean-Luc Godard. Só o cinema? Ou um cinema só?
Outtakes são isso mesmo: restos de algo, fragmentos resultantes de um todo que no caso singularíssimo de Mekas nunca existiu para além da vida.
O cinema de
outtakes é, então, um cinema de imagens sós, de imagens sem filme, porque o filme é precisamente a matéria dessa solidão conjunta. Reunião de detritos perdidos na corrente da memória, uma memória filmada, uma memória que é uma realidade de imagens que, muito profundamente, nos toca. Toca, porque, como Mekas também diz e repete, esta montagem não encobre qualquer finalidade ou objectivo. O objectivo ou a finalidade é a sua solidão, a sua "outtakeness
". E, com este gesto revolucionário, revolução franciscana, de pés plantados no chão, um poeta-santo para quem Deus é o maior dos cineastas mostra (não demonstra) que o negativo no cinema não é o negativo-filme mas o filme que ficou de fora. Redimindo este "novo" negativo, positivando-o, produz um pequeno milagre - mais um de Jonas Mekas - chamado "Outtakes from the Life of a Happy Man".
(Este filme de Jonas Mekas passou ontem no festival DocLisboa. Volta a passar no dia 29 de Outubro, no City Alvalade, às 22:00.)