Por outras palavras, se excluirmos momentos pontuais no filme, que procuram explorar um imbricado, visualmente sofisticado, jogo de espelhos entre perspectivas (a das personagens e a das imagens que estas tanto fetichizam), toda a arquitectura dramática de "Los abrazos rotos" é um perfeito caos, repleto de indecisões, buracos e inconsistências que poderão equivocar drasticamente um espectador que não conheça as grandes obras de Almodóvar, que se demarcam precisamente pela sua clareza clássica e, outra coisa que não encontramos aqui, por uma mordacidade, que é uma plasticidade..., sem limites.
Os buracos deste filme são vários, começando precisamente pela forma como abre: Harry Caine, um argumentista cego que se encontra numa situação emocionalmente difícil (perdeu o amor da sua vida de forma trágica e obscura) tal como criativa e financeiramente instável (terá de começar a escrever guiões mais "vendíveis"), é-nos apresentado numa cena de flirt com uma loiraça que o terá encontrado na rua e que, segundos depois, está envolvida com ele no sofá. Caine aparece como um cego cheio de lábia, alguém no auge da sua virilidade - a cegueira até parece ser um isco conveniente. Mas, depois, com o desenrolar do longo puzzle de "Los abrazos rotos", percebemos quão desenquadrada esta cena está com o tom geral do filme.
Mais à frente, para não destoar, temos Almodóvar a inserir cenas absolutamente redundantes ou outrossim injustificadas. A cena em que a fraca personagem de Penélope Cruz desvela uma vida paralela onde ganha umas massas como call girl é descabida e quase caricatural para a personagem do empresário Ernesto Martel - ou pretendia Almodóvar retratá-lo como um velhinho pervertido, com dinheiro, influência mas sem good looks, sedento de carne fresca? Para além de cenas desnecessárias e injustificadas, Almodóvar não consegue gerir todas as histórias que tem em mãos: há um claro problema de perspectiva, mas acima de tudo Almodóvar mostra-se incapaz de destrinçar o essencial do acessório, omitindo pedaços do filme que seriam importantes em detrimento de cenas (como as já citadas) que são grotescas ou inúteis ou ambas.
Nunca vimos o realizador espanhol esquecer-se de modo tão escandaloso das suas personagens - a mãe e o pai de Penélope são, com muito pouca subtileza, postos de lado no filme nem este vai a meio - ou a dar tanta atenção a personagens tão desleixadamente caracterizadas como Ernesto Filho, um peeping tom, diabolicamente gay, empenhado numa estranha e muito pouco convincente vingança contra o seu pai homofóbico. Tudo muito esquemático, mal articulado e desinspirado. A ideia do filme dentro do filme que é aqui explorada será das soluções mais abusivamente auto-referenciais no cinema de Almodóvar ou não teria este posto as personagens de "Los abrazos rotos" a refilmar a sua mais que célebre obra-prima "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos" e tornado a odisseia da sua montagem num disparatado, e mais uma vez, pouco claro, motivo moral.
Com efeito, o que quer mesmo Almodóvar dizer com a última frase que Mateo diz na mesa de montagem? "Deve-se acabar um filme, nem que seja às cegas", frase que diz mais sobre "Los abrazos rotos" do que sobre o filme que este contém. Acreditamos que Almodóvar mudou de método aqui: pensou primeiro em imagens e, só depois, em como chegar até elas, criando e sacrificando personagens unidimensionais, recorrendo a clichés antigos, mas sem brilho (e ultrapassando muitas vezes, como nunca antes repita-se, a linha ténue que separa o kitsch do piroso) ou enredando ainda mais as suas personagens num plot desinteressante, mal construído, repleto de pequenos pretensos twists dramáticos que tomam o espectador por burro (todas as revelações finais são mais óbvias que a intriga de uma telenovela da TVI). Em suma, "Los abrazos rotos" é um filme que Almodóvar conseguiu concluir, mas tomado por uma total cegueira criativa.
Ler mais aqui: IMDB.
1 comentário:
mto boa a critica, aspera como este filme merece
a parte que mais gostei do filme foi a releitura do "Mulheres a beira de um ataque de nervos"...hehehe
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