quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Passagens em 3ª mão (I): "Os Subterrâneos"

O outro dia estava a ler "Os Subterrâneos" de Jack Kerouac, edição da Relógio D'Água que requisitei na Biblioteca Municipal. Como acontece em quase todos os livros que requisito, este vinha com sublinhados - alguns trazem pequenos apontamentos, muitas vezes, a lápis, mal apagados (tipo palimpsesto). Intriga-me a vida de cada um destes livros e o facto de cada um deles ter marcado nas suas páginas indícios do percurso percorrido - seja pelo desgaste provocado pelo uso, seja pelos tais sublinhados (a lápis e também, mais negligentemente, a caneta), seja pelas dobras em determinadas páginas, seja pela sua capa massacrada, etc.

Claro que é proíbido escrevinhar o que quer que seja, a lápis ou não, em livros da biblioteca (já agora: nunca o fiz), mas está visto que um impulso mais forte leva alguns leitores a destacar furtivamente o que lêem, uma frase, uma palavra, que por sua vez os terá marcado a ponto de estes a fazerem sobressair na mancha de texto original - e a não apagarem o sublinhado quando devolvem a obra. Em tempos de livros digitais e leituras on-line, é, quanto a mim, importante retornar à dimensão mais orgânica da leitura; aquela que faz do livro objecto de viagens várias partilhadas por pessoas que (provavelmente) nunca se cruzaram na vida ou, no limite, só se cruzaram através da leitura das palavras de um escritor.

Abro nova rubrica neste espaço (Passagens em 3ª mão, em possível diálogo com a rubrica Passagens - estas garantidamente em 2ª mão -) dedicada às frases, completas ou não, marcadas pelos leitores que me precedem em livros requisitados em bibliotecas públicas. Lanço o mesmo desafio a todos os que têm por hábito requisitar livros. E também não deixo de pedir aos autores destas frases "órfãs", ou seus respigadores, que as reivindiquem - uma vez que estas lhes pertencem, nem que seja, pelo menos, em segunda mão.

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o estúpido nervosismo neurótico da personalidade fálica (sublinhado a lápis)

Jack Kerouac, Os Subterrâneos (1958), pp. 29, Relógio D'Água, Requisitado na Biblioteca Municipal de Lisboa, Cota 82-31/KER

Frase dita na primeira pessoa pelo próprio Kerouac, num dos seus momentos de clarividência anti-máscula e, logo, auto-destrutiva. Acho curioso que o leitor deixe sublinhada esta frase, quase como um gesto de censura (ou de desespero/aviso) ao leitor masculino que aí venha (com a sua personalidade fálica tradicionalmente neurótica). Pressinto, mas não quero parecer "machista", que este leitor é uma leitora. Estarei correcto? (Algum dia saberei?)

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