Não é, longe disso, o melhor filme de Kurosawa. Mas também detesto começar o que quer que seja com "não é, longe disso, o melhor filme de quem quer que seja". "Drunken Angel" tem a marca de génio de Kurosawa - e essa marca é deixada pela forma como a câmara pontua, em liberdade, a respiração da história. Exemplo disso é a melhor cena de todo o filme. Numa sequência, o médico - o primeiro anjo bêbado - conversa com a sua assistente, jovem mulher cujo marido é um criminoso perigoso que saiu recentemente da prisão.
A certa altura, a câmara, como que desinteressada da narrativa principal, desvia-se da rapariga, do médico e de Mifune - aquele que se revelará o segundo anjo bêbado - e aproxima-se da origem da melodia que se ouve ao fundo. Move-se no espaço, suavemente, na sua direcção. Quando a encontra, vemos um jovem anónimo a tocar guitarra - e pensávamos nós, na cena anterior, que esta música era extradiegética... De súbito, surge um homem misterioso que lhe pede a guitarra. O jovem anui ao pedido e o homem misterioso começa a tocar sonoramente uma melodia que nos devolve, com um corte, ao interior da casa do médico. A mulher apercebe-se da música e diz ao médico: "o meu marido costumava tocar esta música". Uma melodia junta todas as principais personagens do filme. Assim, como que num estalar de dedos... É ou não é coisa de mestre?
Kurosawa viria a aperfeiçoar este dispositivo na sequência memorável do duelo em "Stray Dog": o polícia e o ladrão, finalmente, frenta a frente, estáticos, na expectativa que o outro tome a iniciativa e, ao fundo, ouve-se um piano. A câmara distancia-se desta cena tensa para filmar o quadro serenamente doméstico de uma rapariga que toca piano. Ela pára, levanta-se e vai à janela ver o que se passa. O que ela vê da sua janela é o duelo, ou melhor, o filme... Como nós no cinema.
Sem comentários:
Enviar um comentário