quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Estado da arte (I)


A culpa de toda esta situação? Bem, primeiro é dos jornalistas que insistem em tornar a política numa arena de medíocres que não pensam pela sua cabeça e que ascendem a opinion makers à custa dos seus raciocínios circulares, encomendados pelo seu aparelho partidário - a palavra aparelho é tão clara quanto é a palavra sistema no mundo do futebol. Os jornalistas - a começar os da televisão pública - insistem em estupidificar a classe política, quando convidam as pessoas do costume para descodificar a cor da gravata do Sócrates, o esgar X de Cavaco Silva ou o tango sinuoso de Passos Coelho. O folclore político é um produto do grau de infantilização perigosa do debate mediático. Mas o problema, como a história do ovo e da galinha, também está fundamentalmente de quem dirige este país.

Para quem assiste regularmente às actividades da Assembleia, a situação é óbvia: o nível dos nossos deputados é inaceitável num país que se quer evoluído e sério. As intervenções acéfalas de meia dúzia de personagens, que apenas vêm fazer eco acrítico do tal "aparelho", são um insulto ao estatuto do deputado, alguém que representa os cidadãos, supostamente, com independência e espírito crítico. Ao invés, temos uma Assembleia da República com 230 almas, das quais conhecemos 7 ou 8, os únicos que produzem algum pensamento, fazem passar algumas leis e ainda têm tempo para ir debatê-las na TV. Onde estão os restantes? O que fazem? Não sabemos bem - se calhar nem eles.

Faço esta introdução para dizer isto: as recentes negociações em torno do Orçamento de Estado são mais uma machadada na credibilidade dessa instituição apodrecida que é a Assembleia da República (AR). Afinal, parece que, de repente, a Democracia só funciona com maiorias absolutas. Falácia inaceitável, tendo em conta que o Estado de Direito se baseia no pluralismo, na abertura e na diversidade; a Assembleia da República tem composição diversa e complexa porque a Sociedade é diversa e complexa. Óbvio? Não, para os principais partidos da nossa praça, só há democracia quando se evita "empoderar" (palavra horrível) mais a Assembleia. Cá estão, de novo, os políticos a assumirem, sem saberem se calhar - por vício de linguagem, talvez -, a sua tremenda incompetência e, tantas vezes, má-fé.

Depois dizem-nos que é natural haver negociações entre o partido do Governo e o maior partido da oposição. Negociações à porta fechada, como aquela diplomacia secreta que tomava forma em vésperas de guerra ou atentados de Estado. É normal? Não, nem sequer me parece constitucional, visto que, segundo o princípio democrático da transparências das instituições, as leis devem ser debatidas em sede parlamentar pelos nossos representantes. Ora, para PS e PSD a lei que é o Orçamento de Estado deve ser conjurada entre estes dois partidos, que nem coligados estão, e à porta fechada.

Assistiu ao debate da especialidade do último Orçamento, aquele em que PSD anuiu ao pedido para dançar o tango do PS? Não? Então conto-lhe aqui que o PSD não esteve lá, ou melhor, esteve lá um senhor Deputado a fazer figura de corpo presente. Mas não foi proferida uma única sugestão da parte deste. Claro! Já havia sido tudo combinado nas tais negociações à porta fechada sabe-se lá feitas por quem e com que interesses em jogo. Outra coisa: quem é o senhor Passos Coelho? Alguém votou nele para nos representar? Não, pois não? Então por que tem ele tanta palavra a dizer no que diz respeito à viabilização do Orçamento? Miguel Macedo, líder parlamentar do PSD, parece o homem invisível durante todo este processo e ele é, à luz da Constituição, um representante dos portugueses na AR. O senhor Passos Coelho é um empresário e líder do PSD. Representa os interesses de um partido, não os interesses do povo português - pois estes não lhe foram confiados pelo voto.

Mas toda a gente acha normal tudo isto. Estas negociações feitas à margem da lei e, pior, da moral. Ninguém, a começar pelos jornalistas, está interessado em começar a sanear o debate público, a emprestar- sem juros - alguma credibilidade, seriedade, elevação à discussão política. O senhor Cavaco promete-nos, agora, uma magistratura activa. De novo, este senhor, tecnocrata autocrático com mentalidade provinciana, mete o pé na poça: então se promete uma magistratura activa, quer dizer que tem sido o responsável por uma Presidência passiva? Se calhar, mas quem sou eu para pôr em causa o Doutor Aníbal Cavaco Silva - o único político português cujo primeiro nome é Doutor. Deve ser da postura rígida, do espírito estreito, do miserabilismo neo-salazarento e do endeusamento tecnocrata que a opinião publicada lhe tem devotado.

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