quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Beyond a Reasonable Doubt (1956) de Fritz Lang


Não há fundamentalismos aqui. "Beyond a Reasonable Doubt" é um filme de Lang, com Dana Andrews, mas isto, só por si, não faz dele um bom filme. Numa palavra, a intriga é envolvente, mas a espaços grosseiramente incongruente, quase negligente. Num filme sobre a pena capital e os interstícios do sistema judicial norte-americano - no fundo, as suas brechas escandalosas que permitem a condenação à morte com base em meros indícios de circunstância e não matéria de facto... - impunha-se algum rigor à arquitectura narrativa.

Há uma incongruência nos factos, desde logo, no modo como decorre a investigação da morte de uma bailarina de cabaret, porquanto parece risivelmente superficial, ao ponto de só perto do fim ficarmos a saber o nome "verdadeiro" da vítima, quem é o seu "manager" e a história de um namorado "abusador"... então mas a polícia não fez investigação? Foi tudo mesmo um exercício de retórica por parte do district attorney, só isso e nada mais? A intriga, que tem uma ideia base, de facto, muito interessante, peca pela forma básica como retrata os próprios meios de investigação do sistema judicial americano. O espectador não sabe quase nada da rapariga e ficará sem saber até ao momento em que, já condenado um "suposto" inocente, alguém começa a fazer perguntas tão básicas como: quem era e com quem é que esta andava?

Depois, como se explica o final desconchavado, justicialista, em que ficamos a saber que aquilo que parecia forjado era, de facto, uma astuta manobra de diversão do assassino? O twist poderia ser inteligente, mas se a versão final dos factos (verdadeira?) fosse credível. Como é que ninguém - muito menos a polícia, não é verdade? ou o tão elogiado district attorney? - procurou encontrar a ligação entre o condenado e a vítima? Estamos na presença de um julgamento medieval, que, a certa altura, parece "gozar" com a inteligência do espectador pelo simplismo bárbaro dos seus procedimentos. Não é crível que a justiça americana alguma vez se tenha processado deste modo.

Outra ordem de incongruências. Desde logo, os fracos motivos dos dois homens envolvidos no plano rocambolesco, e sem dúvida empolgante, que estrutura a narrativa do filme. Sobre estes, questionamos a própria licitude do plano, e não vemos nele qualquer tipo de acto heróico contra a pena capital; apenas uma muitíssimo pouco ética, até terrorista!, tentativa de desmontar o sistema por dentro... Teria sido muito mais interessante se o "master mind" estivesse ciente do verdadeiro grau de culpabilidade do seu "parceiro" - como já deve ter reparado o leitor atento, estou a tentar não estragar a surpresa, mais que tudo, "as boas surpresas" do plot. Outra incongruência prende-se com a fraca caracterização da personagem de Joan Fontaine. Sempre deslumbrante, com um ar de princesa imperturbada - ela que, de súbito, enfrenta a morte do pai e vê o ex-noivo envolvido num homicídio brutal! Em momento algum, Fontaine evidencia a mínima prostração; é uma personagem esvaziada, quase desumana... plástica. Um adereço.

Lang não é totalmente bem sucedido neste filme, tal como não o fora em "While the City Sleeps", filme realizado também em 1956 e também com Dana Andrews no papel principal. Este díptico judicial, com toques de noir, peca pela fraca ligação entre factos, como pela artificialidade dos interesses que movem cada personagem. Ambos, contudo, atacam duas questões fundadoras da democracia americana: os limites da liberdade de imprensa e da justiça dos tribunais. Tendo em conta todas as inexactidões, e o registo excessivamente apressado, calcanhar de Aquiles de alguns dos mais ousados filmes da RKO (exemplo de "Angel Face"), estes filmes, mais precisamente "Beyond a Reasonable Doubt", testam ao absurdo a suspension of disbelief do espectador moderno, mas, com a disposição certa, são dois cativantes films noirs políticos de Lang - é mais por aí, do que pela via judicial "de substância", que importa reter estas experiências.

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