Daí a metáfora do espelho como ponto de contacto entre dois mundos (que no filme são os tais dois amores), mas em "La frontière de l'aube" a simbologia vai, a nosso ver, mais longe: há os espelhos do filme e o outro que deseja (voyeuristicamente) capturar uma realidade, que por nunca ser presente, é sedutora e fatal. Veja-se a forma como a câmara de Garrel (pai) procura fugir, na segunda parte do filme (segundo amor), de um passado que a persegue porque já foi filmado (primeiro amor). Uma das cenas mais belas do filme é aquela em que Garrel (filho) se reencontra com Carole, depois desta ter saído do hospital psiquiátrico: numa total rejeição do campo-contra-campo clássico, o diálogo no café é filmado num longo plano-sequência que "inventa" no reflexo de um espelho o contra-campo de Louis Garrel. É o momento que marca uma viragem; o prenúncio do "salto" que Garrel dá no fim.
A estabilidade de Garrel (filho), que entretanto curiosamente passou a fotografar muito menos, é acompanhada por uma maior rigidez formal da câmara. Mas o filme (espécie de subconsciente da câmara aqui) não cessa de (n)os puxar para os fantasmas de um amor que superou a sua própria desmaterialização. Garrel (filho) é então enfeitiçado pelo seu reflexo, que é interior e ainda pertence ao passado. A imagem de Carole (primeiro amor) assombra os sonhos, tal como a vida, de Garrel; ela tornou-se mais interior e profunda que a imagem de Ève (segundo amor). Esta descoberta quase necrófila do amor verdadeiro é qualquer coisa que lembra Preminger e Lang. A fotografia miraculosa de William Lubtchansky, com o seu claro-escuro ofuscante e saturado de grão, dá a textura ideal a um universo de semi-vivos. A certa altura, Garrel diz a Carole "nós somos as pessoas que dormem" - este é o registo de "La frontière de l'aube", espécie de sonambulismo no limiar da morte.
Aliás, é curioso ver como num filme sobre relações entre homens e mulheres o sexo é quase sempre preterido ao sono. E daí a importância fundamental do último plano do filme: imagem de um corpo, esvaído em sangue, estendido no chão não como um morto mas como quem dorme um sono sereno e... libertador. A imagem mais violenta de todo o filme é uma imagem de pacificação ou a expressão emancipadora de um amor selvagem, romântico e puro ou, retomando uma expressão que melhor cabe em "Les amants réguliers", "desaburguesado". Com ele, Garrel passa para o outro lado: da vida, do espelho, da câmara... e o filme acaba quando o amor (re)começa.
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3 comentários:
que bonito...
acabei de vir do cinema, do filme, e quero dar.te os praabéns pela critica. caramba.
Um dos grandes filmes do ano certamente.
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