Depois desta exposição, que considero elucidativa quanto ao valor estético e filosófico deste filme de Malick, fiquei com a sensação plena de que um bom punhado de cinéfilos não quis enfrentar uma obra com esta claridade, precisamente, porque do cinema os mais cegos procuram respostas a perguntas feitas, ao passo que os que querem mesmo ver mais longe e mais fundo encontram na alta-indefinição (usando um trocadilho de Manoel de Oliveira) do imagiário malickiano um espaço aberto a perguntas novas e inesperadas, que se fazem, refazem e desfazem sempre que vemos ou nos lembramos do filme, da experiência de o termos visto, das suas imagens ou só da forma como aquela luz bateu naquele rosto eternizado por aquele plano fugaz. E, se calhar, o grande cinema - como a grande filosofia - é isso mesmo: espaço permanentemente renovado onde se questiona o mundo, sempre a partir de um ponto novo ou de um ponto que se renova sempre. Filosofia, uma questão de découpage...?
Esse ponto novo é a única constante no cinema de Malick, tal como a grande constante dos grandes pensadores livres, como Maria Filomena Molder. Malick e Molder, encontro que, com o consentimento desta, quero agora partilhar, em pequenos excertos, convosco - com imagens, cheias de ideias, dele e ideias, cheias de imagens, dela.
(Aviso que a intervenção durou perto de 40 minutos, pelo que só transcrevi as partes que servem melhor os interesses deste blogue. Este texto foi revisto pela autora, Maria Filomena Molder.)
(...) Este filme começa com uma citação do Livro de Job (...):"Onde estavas tu quando lancei as fundações da Terra?". (...) Esta pergunta vai reacender-se em todos os momentos do filme até ao fim, isto é, no meu entender, não é só uma dinâmica religiosa que está aqui em causa - e trata-se de um filme profundamente religioso - mas também, por assim, dizer uma dinâmica filosófica e estética. Isto é, a consciência é um acontecimento que tem raízes e essas raízes têm [formas] visíveis de modo que podemos dizer que antes da consciência está tudo aqui, está tudo aí, diante nós, à roda de nós e dentro de nós. Isto é muito importante, no meu entender, porque não estava só no tormento de Deus no homem, que é esta consciência dele saber que ele é o último elo da cadeia, ele que ignora tudo até ao seu aparecimento, isto é, ignora todo o sentido, não é origem de nada; não é só esta ideia que é preciso sublinhar de Deus no coração humano, é também a ideia de que tudo em nós é resposta, tudo em nós é afecção. (...) Depois de nós vermos estas palavras escritas, (...) vê-se uma luz que reaparece no meio do filme e que no termo do filme volta a reaparecer. É uma luz (...) que tem uma dinâmica interna que faz engendrar cores diferentes, um coração branco, uma expressividade azul, há vermelhos e rosas que se misturam e ouve-se água e aves, que devem ser aquáticas.
O papel da água na obra de Malick, sobretudo a partir de A Barreira Invisível, (...) é absolutamente central. O papel da água sob todas as formas: a água tranquila, tumultuosa, a água que se despenha numa fúria devastadora, a água que corre, a água que sustém... todas as figuras da água, a transparência da água, o que se vê debaixo da água, as plantas que estão debaixo da água, os seres humanos que aparecem debaixo da água, a criança que quando vai nascer (...) temos essa visão (...) que é o irromper das águas, (...) sai por uma porta e, ao mesmo tempo, há um urso de peluche e elementos do quarto que saltam fora (...).
Esta imagem, esta audição da água é muito importante, mas também é muito importante aquilo que se costuma chamar de voz-off no cinema, que no caso de Malick tem várias (...) soluções (...). Nós ouvimos alguém, que sabemos que é um homem, que depois vamos saber quem é, dizer a palavra irmão e, a seguir, a palavra mãe. E pergunta: "foram eles que me levaram até Ti?" E nós percebemos que o elemento religioso do filme está lançado, depois, com as palavras de Job.
A seguir fala uma menina, que nós sabemos depois que vai ser a mãe - nós nunca vimos imagens da infância do pai -, (...). Vemos imagens dela no campo, vemos os animais, vemos vacas, cordeiros, as árvores, o trigo e o pai que a leva ao colo. (...) Ela diz que as freiras lhe ensinaram que há dois caminhos: o caminho da natureza e o caminho da graça. A relação entre a natureza e a graça é um tema muito antigo: desde o cristianismo formalizado, mas nós podemos encontrá-lo, por exemplo, no judaísmo. Mas a relação com a natureza e a relação de inquietação (...) dentro da natureza é ancestral. Há a árvore da vida, há muitas versões da árvore da vida muito anteriores ao texto bíblico - encontramos no Egipto versões da árvore da vida (...)
Há uma maneira de traduzir natureza que eu prefiro, que vem do grego: physis. (...) Se formos à etimologia originária de natureza tem a ver com proveniência e nascimento (...), tem a ver com aquilo que é nascimento sem cessar (...). É essa a relação que os gregos têm com a natureza: (...) é princípio de génese e é a própria génese. Esta diferença radical - entre a natureza ser nascimento e nós nascermos - talvez esteja na oposição judaica e, sobretudo, cristã entre natureza e graça.
(...) A natureza quer agradar a si própria; quer ter poder; quer agir; quer receber o agrado dos outros; procura razões para se sentir mal; é distraída em relação à glória e formosura do mundo.
Por outro lado, a graça não quer agradar a si própria; suporta injúrias e maus tratos; suporta não ser amada.
Aquele que escolhe um caminho, não escolhe o outro, diz a mãe (em off). E subitamente nós vemos uma árvore, que sabemos que é a árvore que fica perto da casa onde vive aquela família. Nós já estamos agora no plano que é o da memória daquele homem [personagem de Sean Penn]. Vemos depois o baloiço que está preso nessa árvore.
Menciona [a mãe] que aquele vive fora da graça, terá um fim infeliz. Esta palavra aparece para nós quase como um elemento irónico, porque a dor está prestes a começar, a dor daquela que supostamente escolheu a graça. (...)
Agora aparece a dor da morte do filho, o segundo filho. Ela [a mãe] recebe a notícia pelo correio. (...) Ela só quer morrer, ela quer estar com ele. Dizem "agora estás nas mãos de Deus" e ela responde "Ele sempre teve nas mãos de Deus...e por quê agora, assim?". Porque é que a morte nos aproxima mais de Deus do que a vida?, esta é uma pergunta que eu faço. Ela não a faz, mas ela está no meio dessa pergunta. (...) "A dor vai passar", diz a avó, "mas eu não quero que passe", responde a mãe. (...)
Agora vemos o homem. Supomos que é um arquitecto. Mas não sabemos nada sobre ele. Malick não dá elementos: ele é muito elíptico e, ao mesmo tempo, de uma clareza sem fim. Não há qualquer obscuridade nas imagens, nós é que temos dificuldade em compreendê-las, mas elas não são obscuras: não podiam ser mais claras e evidentes. Aliás, há poucas imagens nocturnas, há algumas, mas quase todas são diurnas. E o que nós vemos é um homem, de cinquenta anos, em casa, com aquela que supomos ser a mulher e ele vai buscar a vela que acende. [Lembra o irmão falecido] (...) E nós começamos a ver a vida de infância, mas antes vemos a vida dele agora, que é passada entre aquilo que chamarei de sublime grotesco. Kant pensou muito sobre o sublime sob a forma emotiva. (...) Para Kant, a emoção é uma afecção que irrompe subitamente e se exprime e que produz (...) abalo, produz estremecimento, seja de alegria ou dor - não há valoração hierárquica aqui. O que produz emoção grotesca sublime? São os arranha-céus imensos; a verticalidade produz uma emoção, uma emoção que tem a ver com ameaça ou a consciência estética de que o nosso corpo não consegue medir (...). [É] a verticalidade imensa que os olhos não podem alcançar. Se o nosso corpo está próximo, há um sentimento emotivo ou uma emoção de ameaça terrível. E essa ameaça não é amenizada por nenhuma relação de intimidade.
O inestético profundo (por relação ao sublime kantiano) tem a ver com a redescoberta que o ser humano faz de si próprio em relação àquela verticalidade brutal, o ser humano sente-se ameaçado, mas não a consegue reaver como experiência íntima, não consegue apropriar-se da ameaça, transformando-a em prazer, como é o caso da visão de uma montanha (...). Na verticalidade citadina, arrepiante, sobretudo, porque é completamente homogénea: são vidros e vidros e céu, qualquer coisa que nos apercebemos quando ele sobe no elevador, que é transparente. Não vemos o interior do elevador; só ele a subir. Mas essa subida é feita sem elevação, é uma subida que não se pode fazer em relação à montanha. Portanto, eu chamo a isto sublime grotesco. (...)
Depois vemos a infância. Eu queria falar desta infância e da mãe. Aprender a falar. A fala não é uma aprendizagem de significados. Foi Wittgenstein que disse isto e eu acredito que ele tem razão. A fala é uma actividade. (...) "No princípio era o acto", diz Goethe no Fausto. (É uma tradução de "no princípio era o logos" do Evangelho de S. João.) O acto é um enxame de condições - fisiológicas, afectivas, cognitivas, ocasionais e necessárias... -; é um enxame de movimentos que a criança faz e que a mãe faz com a criança. E que estão associadas às palavras que utilizamos. A criança aprende muitas palavras que não percebe, nem tem que perceber, porque são gestos que ela faz com essas palavras que detecta. Como diz Santo Agostinho, "se me perguntam o que é o tempo, eu não sei. Se não perguntam, eu sei". Nós estamos quase sempre nessa situação quando falamos. Quando caímos em nós em relação a uma palavra, então procuramos a definição. Podem estar descansados que não a vão encontrar. Mas podem encontrar patamares de compreensão, a definição satisfatória não a irão encontrar.
Aprender a falar. Antes disso: aprender a andar. Para aprender a andar, é preciso alguém que ajude. Para aprender a falar, como é que se ajuda? Qual é a escola que ajuda a mãe a aprender a ensinar o seu filho a falar? Nós não conhecemos essa escola (...).
A criança aprende também a maravilhar-se, com o que vê à volta dela e consigo própria. Aprende a ter medo. Ela, por exemplo, vê alguém a ter um ataque epiléptico (...). Mas também aprende a sentir dor, a sentir uma ferida. Aprende a descobrir segredos, (...) segredos que nós não sabemos se fazem parte da casa ou da imaginação da infância (...).
A descoberta do irmão: o nascimento, o ciúme e a atracção.
A relação violenta com o pai, que é extremamente severo com ele, de ambígua, de poderosa, cheia de ódio e amor profundo.
O encontro com os desfigurados, com o velho que cambaleia (...), mas depois vem um rapaz aleijado, que não consegue andar bem, tem os braços que não se movem. Aí [nos miúdos gera-se] uma espécie de estupefacção perante a desordem que há no mundo - eles pensavam que havia ordem, mas há desordem. E essa desordem não tem qualquer justificação. Tudo está antes de nós e nós não somos chamados a dar justificação - a nossa consciência não consegue justificar.
E a seguir surgem os que vão ser presos, que foram apanhados. Também do ponto de vista físico desfigurados, ou esqueléticos ou com a cara meia desfigurada pelo pavor, com a resistência à prisão... E aparece um movimento que já tinha aparecido em filmes anteriores de Malick: que é o da mulher a dar água a um deles. (...)
Há a descoberta do corpo sob o ponto de vista sexual. A visão não só da mãe, mas também de uma rapariga. Ele entre no quarto dela, abre as gavetas da cómoda, tira uma combinação da seda. (...) Sai a correr, mas nós não vemos, e mete a combinação nuns restos do cais e lança-a às águas. Visão do ponto de vista estético do que é o desejo sexual na infância, com a adolescência a aparecer. (...) Teve início a algo que ele não sabe o que é. (...)
A graça. A graça é uma intensificação da natureza (...), uma transfiguração da ferida que há na natureza. E a ferida que há na natureza é mostrada, no filme, através de todas as imagens, que concorrem com todas estas que vos estou a falar, do surgimento do universo, das explosões, das misturas dos elementos e da separação dos elementos, do surgimento da terra, da primeira vegetação, dos primeiros animais mais complexos (...).
[A certa altura,] nós vemos a mãe voar, como se fosse uma marioneta... Há imagens profundas na poesia, por exemplo de Rilke, da marioneta. Ela está um pouco acima da terra, como se voasse... Há uma imagem muito profunda sobre a terra: "a terra é uma queda em suspenso" [citação extraída de L'experiénce émotionnelle de l'espace de Pierre Kaufmann]. Nós vemos que toda a nossa vida é uma sucessão de quedas em suspenso. Uma espécie de luta contra a gravidade temporária. E nós vemos essa luta temporária sob a forma da suprema formosura, aquilo a que se pode chamar a graciosidade.
Há um combate [em Jack, na versão jovem da personagem encarnada por Sean Penn] entre a mãe e o pai. E em toda a sua vida haverá esse combate. E provavelmente não é toda a vida dele, provavelmente é a vida de cada um de nós.
No fim do filme, nós vemos este homem [Jack] a atravessar elevações difíceis, desertos, (...) ele anda à procura de alguma coisa. Nós vemos sempre tudo. Não há nada no interior daquele homem que não seja exterior. Isto é uma ideia muito profunda. (...) Está tudo diante nós antes de darmos por isso. Isto é, ele não tem consciência que está a correr a vida dele. Ele está a correr a vida dele - a vida dele está à frente (...) E a vida dele agora é procurar qualquer coisa que a memória da morte do irmão, já muitos anos depois, provoca. Todas as emoções da vida dele estão concentradas no lado do irmão (...)
Depois de atravessar muitas portas, há muita água..., ele chega a uma praia, não se sabe como: uma praia muito grande e muito branca, onde não há uma distinção muito grande entre areia e água. A água é calma. E há centenas, milhares de pessoas, de todos os tamanhos, feitios e idades... e subitamente nós vemos [Jack] a dirigir-se ao irmão (...), ao pai (...). Depois a mãe aproxima-se e pega na criança. E nós percebemos que qualquer coisa se está a passar naquele homem. Não sei se a vida tem sentido, (...) mas há qualquer coisa como: aceitar que está tudo diante nós antes de nós termos consciência (...). Incluindo o nosso futuro e a nossa compreensão do futuro. (...)
Esta imagem, esta audição da água é muito importante, mas também é muito importante aquilo que se costuma chamar de voz-off no cinema, que no caso de Malick tem várias (...) soluções (...). Nós ouvimos alguém, que sabemos que é um homem, que depois vamos saber quem é, dizer a palavra irmão e, a seguir, a palavra mãe. E pergunta: "foram eles que me levaram até Ti?" E nós percebemos que o elemento religioso do filme está lançado, depois, com as palavras de Job.
A seguir fala uma menina, que nós sabemos depois que vai ser a mãe - nós nunca vimos imagens da infância do pai -, (...). Vemos imagens dela no campo, vemos os animais, vemos vacas, cordeiros, as árvores, o trigo e o pai que a leva ao colo. (...) Ela diz que as freiras lhe ensinaram que há dois caminhos: o caminho da natureza e o caminho da graça. A relação entre a natureza e a graça é um tema muito antigo: desde o cristianismo formalizado, mas nós podemos encontrá-lo, por exemplo, no judaísmo. Mas a relação com a natureza e a relação de inquietação (...) dentro da natureza é ancestral. Há a árvore da vida, há muitas versões da árvore da vida muito anteriores ao texto bíblico - encontramos no Egipto versões da árvore da vida (...)
Há uma maneira de traduzir natureza que eu prefiro, que vem do grego: physis. (...) Se formos à etimologia originária de natureza tem a ver com proveniência e nascimento (...), tem a ver com aquilo que é nascimento sem cessar (...). É essa a relação que os gregos têm com a natureza: (...) é princípio de génese e é a própria génese. Esta diferença radical - entre a natureza ser nascimento e nós nascermos - talvez esteja na oposição judaica e, sobretudo, cristã entre natureza e graça.
(...) A natureza quer agradar a si própria; quer ter poder; quer agir; quer receber o agrado dos outros; procura razões para se sentir mal; é distraída em relação à glória e formosura do mundo.
Por outro lado, a graça não quer agradar a si própria; suporta injúrias e maus tratos; suporta não ser amada.
Aquele que escolhe um caminho, não escolhe o outro, diz a mãe (em off). E subitamente nós vemos uma árvore, que sabemos que é a árvore que fica perto da casa onde vive aquela família. Nós já estamos agora no plano que é o da memória daquele homem [personagem de Sean Penn]. Vemos depois o baloiço que está preso nessa árvore.
Menciona [a mãe] que aquele vive fora da graça, terá um fim infeliz. Esta palavra aparece para nós quase como um elemento irónico, porque a dor está prestes a começar, a dor daquela que supostamente escolheu a graça. (...)
Agora aparece a dor da morte do filho, o segundo filho. Ela [a mãe] recebe a notícia pelo correio. (...) Ela só quer morrer, ela quer estar com ele. Dizem "agora estás nas mãos de Deus" e ela responde "Ele sempre teve nas mãos de Deus...e por quê agora, assim?". Porque é que a morte nos aproxima mais de Deus do que a vida?, esta é uma pergunta que eu faço. Ela não a faz, mas ela está no meio dessa pergunta. (...) "A dor vai passar", diz a avó, "mas eu não quero que passe", responde a mãe. (...)
Agora vemos o homem. Supomos que é um arquitecto. Mas não sabemos nada sobre ele. Malick não dá elementos: ele é muito elíptico e, ao mesmo tempo, de uma clareza sem fim. Não há qualquer obscuridade nas imagens, nós é que temos dificuldade em compreendê-las, mas elas não são obscuras: não podiam ser mais claras e evidentes. Aliás, há poucas imagens nocturnas, há algumas, mas quase todas são diurnas. E o que nós vemos é um homem, de cinquenta anos, em casa, com aquela que supomos ser a mulher e ele vai buscar a vela que acende. [Lembra o irmão falecido] (...) E nós começamos a ver a vida de infância, mas antes vemos a vida dele agora, que é passada entre aquilo que chamarei de sublime grotesco. Kant pensou muito sobre o sublime sob a forma emotiva. (...) Para Kant, a emoção é uma afecção que irrompe subitamente e se exprime e que produz (...) abalo, produz estremecimento, seja de alegria ou dor - não há valoração hierárquica aqui. O que produz emoção grotesca sublime? São os arranha-céus imensos; a verticalidade produz uma emoção, uma emoção que tem a ver com ameaça ou a consciência estética de que o nosso corpo não consegue medir (...). [É] a verticalidade imensa que os olhos não podem alcançar. Se o nosso corpo está próximo, há um sentimento emotivo ou uma emoção de ameaça terrível. E essa ameaça não é amenizada por nenhuma relação de intimidade.
O inestético profundo (por relação ao sublime kantiano) tem a ver com a redescoberta que o ser humano faz de si próprio em relação àquela verticalidade brutal, o ser humano sente-se ameaçado, mas não a consegue reaver como experiência íntima, não consegue apropriar-se da ameaça, transformando-a em prazer, como é o caso da visão de uma montanha (...). Na verticalidade citadina, arrepiante, sobretudo, porque é completamente homogénea: são vidros e vidros e céu, qualquer coisa que nos apercebemos quando ele sobe no elevador, que é transparente. Não vemos o interior do elevador; só ele a subir. Mas essa subida é feita sem elevação, é uma subida que não se pode fazer em relação à montanha. Portanto, eu chamo a isto sublime grotesco. (...)
Depois vemos a infância. Eu queria falar desta infância e da mãe. Aprender a falar. A fala não é uma aprendizagem de significados. Foi Wittgenstein que disse isto e eu acredito que ele tem razão. A fala é uma actividade. (...) "No princípio era o acto", diz Goethe no Fausto. (É uma tradução de "no princípio era o logos" do Evangelho de S. João.) O acto é um enxame de condições - fisiológicas, afectivas, cognitivas, ocasionais e necessárias... -; é um enxame de movimentos que a criança faz e que a mãe faz com a criança. E que estão associadas às palavras que utilizamos. A criança aprende muitas palavras que não percebe, nem tem que perceber, porque são gestos que ela faz com essas palavras que detecta. Como diz Santo Agostinho, "se me perguntam o que é o tempo, eu não sei. Se não perguntam, eu sei". Nós estamos quase sempre nessa situação quando falamos. Quando caímos em nós em relação a uma palavra, então procuramos a definição. Podem estar descansados que não a vão encontrar. Mas podem encontrar patamares de compreensão, a definição satisfatória não a irão encontrar.
Aprender a falar. Antes disso: aprender a andar. Para aprender a andar, é preciso alguém que ajude. Para aprender a falar, como é que se ajuda? Qual é a escola que ajuda a mãe a aprender a ensinar o seu filho a falar? Nós não conhecemos essa escola (...).
A criança aprende também a maravilhar-se, com o que vê à volta dela e consigo própria. Aprende a ter medo. Ela, por exemplo, vê alguém a ter um ataque epiléptico (...). Mas também aprende a sentir dor, a sentir uma ferida. Aprende a descobrir segredos, (...) segredos que nós não sabemos se fazem parte da casa ou da imaginação da infância (...).
A descoberta do irmão: o nascimento, o ciúme e a atracção.
A relação violenta com o pai, que é extremamente severo com ele, de ambígua, de poderosa, cheia de ódio e amor profundo.
O encontro com os desfigurados, com o velho que cambaleia (...), mas depois vem um rapaz aleijado, que não consegue andar bem, tem os braços que não se movem. Aí [nos miúdos gera-se] uma espécie de estupefacção perante a desordem que há no mundo - eles pensavam que havia ordem, mas há desordem. E essa desordem não tem qualquer justificação. Tudo está antes de nós e nós não somos chamados a dar justificação - a nossa consciência não consegue justificar.
E a seguir surgem os que vão ser presos, que foram apanhados. Também do ponto de vista físico desfigurados, ou esqueléticos ou com a cara meia desfigurada pelo pavor, com a resistência à prisão... E aparece um movimento que já tinha aparecido em filmes anteriores de Malick: que é o da mulher a dar água a um deles. (...)
Há a descoberta do corpo sob o ponto de vista sexual. A visão não só da mãe, mas também de uma rapariga. Ele entre no quarto dela, abre as gavetas da cómoda, tira uma combinação da seda. (...) Sai a correr, mas nós não vemos, e mete a combinação nuns restos do cais e lança-a às águas. Visão do ponto de vista estético do que é o desejo sexual na infância, com a adolescência a aparecer. (...) Teve início a algo que ele não sabe o que é. (...)
A graça. A graça é uma intensificação da natureza (...), uma transfiguração da ferida que há na natureza. E a ferida que há na natureza é mostrada, no filme, através de todas as imagens, que concorrem com todas estas que vos estou a falar, do surgimento do universo, das explosões, das misturas dos elementos e da separação dos elementos, do surgimento da terra, da primeira vegetação, dos primeiros animais mais complexos (...).
[A certa altura,] nós vemos a mãe voar, como se fosse uma marioneta... Há imagens profundas na poesia, por exemplo de Rilke, da marioneta. Ela está um pouco acima da terra, como se voasse... Há uma imagem muito profunda sobre a terra: "a terra é uma queda em suspenso" [citação extraída de L'experiénce émotionnelle de l'espace de Pierre Kaufmann]. Nós vemos que toda a nossa vida é uma sucessão de quedas em suspenso. Uma espécie de luta contra a gravidade temporária. E nós vemos essa luta temporária sob a forma da suprema formosura, aquilo a que se pode chamar a graciosidade.
Há um combate [em Jack, na versão jovem da personagem encarnada por Sean Penn] entre a mãe e o pai. E em toda a sua vida haverá esse combate. E provavelmente não é toda a vida dele, provavelmente é a vida de cada um de nós.
No fim do filme, nós vemos este homem [Jack] a atravessar elevações difíceis, desertos, (...) ele anda à procura de alguma coisa. Nós vemos sempre tudo. Não há nada no interior daquele homem que não seja exterior. Isto é uma ideia muito profunda. (...) Está tudo diante nós antes de darmos por isso. Isto é, ele não tem consciência que está a correr a vida dele. Ele está a correr a vida dele - a vida dele está à frente (...) E a vida dele agora é procurar qualquer coisa que a memória da morte do irmão, já muitos anos depois, provoca. Todas as emoções da vida dele estão concentradas no lado do irmão (...)
Depois de atravessar muitas portas, há muita água..., ele chega a uma praia, não se sabe como: uma praia muito grande e muito branca, onde não há uma distinção muito grande entre areia e água. A água é calma. E há centenas, milhares de pessoas, de todos os tamanhos, feitios e idades... e subitamente nós vemos [Jack] a dirigir-se ao irmão (...), ao pai (...). Depois a mãe aproxima-se e pega na criança. E nós percebemos que qualquer coisa se está a passar naquele homem. Não sei se a vida tem sentido, (...) mas há qualquer coisa como: aceitar que está tudo diante nós antes de nós termos consciência (...). Incluindo o nosso futuro e a nossa compreensão do futuro. (...)
(Obrigado à Rita Benis pela excelente dica.)
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