sábado, 2 de fevereiro de 2013

Along the Great Divide (1951) de Raoul Walsh


Direcção de fotografia. É preciso falar dela quando se toca nalguns dos filmes mais extraordinários de Walsh e é nela que se encontra uma estética que lhe é devida por inteiro - e que, dessa forma, afirma uma muito bem definida noção de mise en scène. "Along the Great Divide" é um western fotogramaticamente irmão de "Pursued", apesar de "valer por si" o seu preto-e-branco brumoso, rasgado por um jogo psicologizante de sombras projectadas nos corpos, sobre a paisagem, no caso, o deserto que, de novo, se ecraniza para exorcizar os demónios do protagonista e das outras personagens que o acompanham na sua travessia fatídica de um ponto A a um ponto B - viagem "desesperada", de novo, num filme de Walsh. "Pursued" é "fotografado" pelo chinês James Wong Howe, já "Along the Great Divide" é pintado a negro e cinza pela mão de Sidney Hickox. O primeiro trabalhou - e continuaria a trabalhar - com Walsh numa série de filmes, como "Uncertain Glory" e "Gentleman Jim", já o segundo contou com algumas colaborações valiosas, como "Objective, Burma!", apesar de nitidamente "Pursued" ser a sua magnum opus fotográfica ao serviço de Walsh. Acredito que a experiência de James Wong neste filme terá tido um impacto duradouro na estética walsheana, porque, quanto a mim, "Along the Great Divide" continua, porventura mais plástica que tematicamente, o que fora iniciado brilhantemente em "Pursued".

As "noites americanas" destes westerns expressionistas são densas tal como, indiferente à hora, o céu é negro, tão negro quanto a roupa de Kirk Douglas, ou os cavalos, ou a espiral que puxa - sem retirar o filme da sua linearidade classicamente walsheana - a narrativa do presente para o passado "massacrado" pelo fantasma da morte do pai. O herói, um marshall que se decide sempre pela obediência à lei - nem sempre em Walsh é assim, como sabemos -, sente-se responsável pela morte do próprio pai. Ao se aperceber disso, a personagem de Walter Brennan, acusada do homicídio do filho de um grande fazendeiro, procura de imediato mexer e remexer nessa ferida, ocupando o vazio traumático que congela ou desorienta o marshall na sua acção (não é a primeira vez que, num filme de Walsh, uma personagem se faz passar por uma outra já perecida, reconvocando ou ressuscitando a sua presença impossível). Essa acção é, na realidade, uma missão encarada com a determinação e o zelo de quem professa uma religião - uma crença - chamada "lei" ou mais concretamente levar do ponto A ao ponto B o velho Brennan, para que este tenha o julgamento que merece. Kirk Douglas terá de lidar com inúmeras hesitações ao longo do percurso, nomeadamente de um dos seus colegas que não tem a mesma visão irredutível sobre a verdade e justeza da Lei. Em certa medida, Walsh não elimina mas contraria a posição anti-sistémica que os seus heróis costumam assumir: Kirk resiste a ela, estoicamente, fazendo da luta contra a desobediência uma forma de estar na vida - uma moral, onde assentarão as bases do Estado moderno norte-americano.

"Along the Great Divide", antecipando em muito o que foram alguns dos melhores westerns dos anos 50, de Boetticher e Mann, é um drama construído sobre uma travessia no deserto, onde fantasmas do passado (o complexo de Édipo de Kirk), as miragens do presente (que a paisagem oferece em forma de ratoeira mortífera) e as convicções do futuro (um Estado de Direito nascido sobre as cinzas do faroeste mais selvagem) se projectam em simultâneo, sob a sombra espessa da dúvida ou da incerteza. A relação que Kirk vai estabelecer com a lindíssima Virginia Mayo é mais um brilhante "jogo de massacres" walshiano que, enquanto subplot, vem lançar sobre todo este percurso físico e interior a dose de erotismo e tensão sexual que tanto nos provoca os sentidos. Viagem apaixonante!

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