quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013
Band of Angels (1957) de Raoul Walsh
"Band of Angels", porventura o filme mais desmesuradamente romântico e melodramático de Walsh, é também uma das suas obras mais ambiciosas, ao elevar bem alto - mais alto do que em qualquer outro filme que vi do realizador norte-americano - a dimensão épica da sua narrativa, sendo esta impulsionada por três actores/personagens com uma força dramática imparável: Yvonne de Carlo, Clark Gable e Sidney Poitier. Se para as personagens masculinas, basta a presença carismática desses dois poços de viralidade máscula - e, no caso, basta o sorriso característico ou a gestualidade aristocrática de Gable para transmitir toda a mensagem do que é, foi e se tornará "a força" da sua personagem -, na personagem feminina, Yvonne de Carlo, na pele de Amanda Starr, a "escrava livre" do oximórico título francês do filme, introduz na narrativa a determinação feminina que, ao contrário do que acontece em boa parte do cinema de Walsh, não nos surge atravessada por um traço neurótico moralmente "desorientador".
Nesse aspecto, de Carlo é "mais mulher" que qualquer outra mulher num filme que tenha visto de Walsh, mesmo comparando-a com Jane Russell em "The Revolt of Mamie Stover". Apesar disso, Starr, como Stover, vive as angústias típicas do herói - ou da heróina, enfim - de Walsh: "é aquilo que não é", uma mulher com a educação de uma rapariga branca, administrada por um fazendeiro muito rico, mas com "sangue negro" a correr-lhe nas veias, que a tornará numa "escrava livre" nas mãos de outro homem (Gable), a segunda figura paterna, desta feita, um homem que lhe conquistará o coração, depois de arrebatar, num leilão, o seu corpo-mercadoria.
Gable vive perseguido (pursued) pelo seu passado - que não revelarei aqui, para não estragar a surpresa - tal como Starr luta em permanência com a sua condição de mulher branca (livre), filha de uma mãe negra (escrava). Ele diz-lhe, antes de a beijar, que não podemos fugir do nosso passado ou pensar que o que fomos é separável de o que somos. O escravo culto (tão negro quanto branco?), Rau-Ru, magnificamente interpretado pelo sempre-genial Sidney Poitier, também lida diariamente com a indefinição da sua identidade: acarinhado e cultivado por Gable, mas, ao mesmo tempo ou por causa disso, preso, ainda mais preso a ele do que por norma está um escravo ao seu senhor - é o carinho (kindness) que tanto o revolta, ao mesmo tempo que o subordina mais e mais ainda ao seu amo.
Walsh não vai pelo caminho mais fácil, não mostra um fazendeiro terrível, que maltrata os seus escravos, nem torna Starr numa mulher negra sujeita a todas as desumanidades do sistema esclavagista, que imperava com violência nas vésperas da guerra civil norte-americana. Quem estiver a ler este meu comentário agora, decerto estará a pensar no recente "Django Unchained". De facto, como o próprio Vasco Câmara aponta na sua análise ao filme de Tarantino, "Band of Angels" apresenta vários pontos de contacto com esse filme, nem que seja por ambos situarem a sua acção no mesmo período histórico ou por também complexificarem a definição identitárias das suas personagens, mostrando (ou caricaturando, no caso de Tarantino) figuras como o "traficante de escravos negro" ou o empregado negro mais racista que qualquer homem branco... A própria sequência em que a personagem de Gable abre uma caixa onde estão dois revólveres e, com toda a serenidade e coolness do mundo, convida o seu principal rival a um duelo mortal em nome da sua amada parece prefigurar o que veio a ser o típico "set piece" tarantinesco - a diferença aqui é que só nessa sequência "Band of Angels" dá uma tareia de todo o tamanho a "Django Unchained".
Olhando para trás, para filmes como "Desperate Journey", parece que se fecha um círculo aqui, nomeadamente porque aquilo que eu definia como uma tendência em Walsh para os jogos de papéis, ou melhor, "as trocas de pele" atinge neste filme a sua literalidade histórica, política e psicológica máxima. "Band of Angels", para além de conter toda a potência heróica e épica de Walsh, é também um filme formalmente perfeito, com cores e cenários "intoxicantes" para o espírito e situações dramáticas - magnificamente rendilhadas - de grande intensidade, a começar pela tempestade que empurra Gable até aos lábios de Yvonne (eis o novo "anjo da história" benjaminiano!) e acabando na despedida final entre Poitier e o seu mestre - um duelo com pistolas? Não, um duelo pulverizado pelos sentimentos de dois homens igualmente bigger than life.
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