domingo, 14 de setembro de 2008

Before the Devil Knows You're Dead (2007) de Sidney Lumet

Aos 84 anos, Sidney Lumet faz um dos seus filmes mais cruéis. As personagens de "Before the Devil Knows You´re Dead" são tratadas sem contemplações, a começar pelo patriarca mais velho: Charles Hanson, a principal vítima de uma imbricada intriga em família. Poucas palavras profere, à medida que vai mergulhando na dor pelo desaparecimento da sua mulher e raspando a superfície para descobrir quem a matou e porquê. A interpretação de Albert Finney é feita com o corpo, como poucas no cinema recente: a face e as rugas, os olhos e a postura rígida, pronta a estalar. Os nervos faiscam e nós sentimos que a morte se aproxima, mais uma vez...

Também Philip Seymour Hoffman dá uma dimensão fortemente física à sua personagem, Andy Hanson, o filho mais velho do casal Hanson. O desconforto com o seu próprio corpo está presente na aparentemente inútil cena de abertura: sexo no Rio de Janeiro, intenso, escaldante, ao mesmo tempo que disforme e animal. Percebemos, instantes depois, que os ares do Rio produziram um milagre em Andy, na medida em que este sempre tivera problemas em satisfazer sexualmente a sua mulher, Gina Hanson (Marisa Tomei). Com ela, Andy não fala de emoções: definitivamente, isso é "coisa entre homens" neste filme.

Andy procura esconder o complexo com o corpo, através do dinheiro (desviado ou não) e das drogas. Só assim consegue aliviar a dor de estar preso ao corpo que o tornou no "patinho feio" da família; que o fez partir para a vida com uma desvantagem que, por exemplo, o seu irmão, Hank Hanson, nunca teve. Com efeito, Hank (Ethan Hawke) é a antítese de Andy : um looser, sem dinheiro, divorciado de uma mulher que o desconsidera e com quem teve uma filha exemplar, mas que dificilmente se orgulha do pai que tem. Contudo, foi sempre "o menino bonito" da família Hanson; aquele a quem nunca faltou a protecção e carinho que Andy nunca teve. E, pior ainda, um amante irresistível para a mulher deste último...

Essas duas personagens, dissecadas por dentro e por fora pela câmara de Lumet, vão-se juntar para, sem esforço, poderem resolver todos os seus problemas: seja fugindo para o Brasil, onde "o corpo funciona"; seja provando à filha que não é um "falhado". Não é de admirar que o filme se inicie praticamente in media res: depois da cena de sexo no Rio, temos a cena do assalto, momento que decidirá o futuro dos protagonistas. Depois o filme recupera, em jeito de relatório policial estilhaçado, as diferentes perspectivas em causa.

O recurso a uma montagem à la "Rashômon"/"Elephant" é justificada pela complicadíssima teia de acontecimentos que se desenrola a partir da cena do assalto, o olho de um furacão que varre a família Hanson do mapa. Este artifício não retira a crueza que Lumet quis imprimir neste conto terrível sobre "a maldade que existe no mundo", como diz a certa altura a única personagem que (prescientemente?) sempre se dedicou ao crime, mas que nesta intriga apenas comete uma violação: a de contar a Charles Hanson a mais terrível das verdades.

Voltámos ao cinema duro e "sem esperança" que Lumet fez tão brilhantemente (sobretudo) nos anos 70, de "Serpico" a "Dog Day Afternoon", passando pelo próprio "Network". Na realidade, não exageramos se dissermos que a brutalidade de "Before the Devil Knows..." é tão desconcertante quanto sabemos que este poderá ser um dos últimos filmes de Lumet, realizador que fez o seu primeiro filme há 51 anos, o inesquecível "12 Angry Men".

Nada aqui parece encaixar no tradicional filme testamental: é um regresso às origens do seu cinema, certo, mas também é uma radicalização da sua visão do mundo, que não esperávamos nesta etapa da sua vida. Choca-nos pela forma como filma a personagem mais velha: Charles Hanson, repetimos, estrondosamente interpretada pelo grande Albert Finney. Esta não tem um minuto de descanso: a dor atravessa-lhe o rosto e ressoa nas poucas palavras que balbucia ao longo de todo o filme. A vingança que perpetra no fim, cheia de ódio e desespero, não traz qualquer alívio. Os seus passos finais, em direcção "à luz", são a mais difícil admissão no Paraíso. Será isso que Lumet espera para si mesmo?

Ler mais aqui: IMDB.

5 comentários:

Anónimo disse...

Concordo, é uma das melhores estreias deste ano, valeu a pena esperá-la. Mas acho que seria melhor se não tivesse tantas cenas redundantes e se aprofundasse mais a personagem da Tomei.

Luís Mendonça disse...

Fiquei com medo no começo de que Lumet se tinha rendido aos "artifícios da montagem" e optado por esta construção elíptica, repleta de flashbacks explicativos,sem que tivesse muito a dizer... Mas o filme, de facto, tinha de ter esta visão estilhaçada, uma vez que cada personagem é um mundo que se transforma irreversivelmente a partir daquele assalto. Era preciso contextualizá-lo e depois avançar com as "consequências".

As cenas redundantes servem para acumular nervos e raiva, a tensão é quase insuportável neste filme - porque, de facto, tudo corre mal e não há tempo para pensar. A repetição (que naturalmente existe) penso que serve para manter o espectador suspenso nesse estado de espírito: inquieto, impaciente, tenso e derradeiramente curioso.

É um jogo de nervos.

Tomei, actriz que considero sobrevalorizada, tem um papel reduzido que também acho que se justifica, tendo em conta a sua função na narrativa: não mais do que, ponto 1, expor a impotência de um contra a fogosidade de outro e, ponto 2, torná-la no segundo objecto de cobiça entre os dois irmãos (depois do dinheiro...).

É muito "clássico" este filme, que é um caper movie, mas também tem toques de noir (sem a femme fatale, mas com a mulher sonça que exibe o corpo para alimentar os seus vícios fúteis).

PS: Estive há pouco tempo a ver as semelhanças entre "We Own the Night", "Cassanda's Dream" e este "Before the Devil...". Três filmes que tenho como das melhores estreias do ano e que nos contam histórias de crime fratricida.

Anónimo disse...

Também me lembrei de "Cassandra's Dream" e "Match Point", embora não seja grande admirador do primeiro. Não me tinha ocorrido "We Own the Night", mas concordo que é dos melhores do ano - o meu preferio, aliás.

Anónimo disse...

De facto as histórias de irmãos parecem dominar este ano, e esta aproxima-se da eloquência cinematográfica de We Own the Night, para mim um dos inegáveis filmes do ano. Concordo com o que dizes acerca do filme, surpreendente e devastador. E sim, sem uma simples nesga de esperança ou redenção. Se for mesmo o último filme de Lumet, será algo para nunca esquecer.

Luís Mendonça disse...

"Se for mesmo o último filme de Lumet"

À boa moda portuguesa, bato na madeira por isso.

Abraço

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