Aos 84 anos, Sidney Lumet faz um dos seus filmes mais cruéis. As personagens de "Before the Devil Knows You´re Dead" são tratadas sem contemplações, a começar pelo patriarca mais velho: Charles Hanson, a principal vítima de uma imbricada intriga em família. Poucas palavras profere, à medida que vai mergulhando na dor pelo desaparecimento da sua mulher e raspando a superfície para descobrir quem a matou e porquê. A interpretação de Albert Finney é feita com o corpo, como poucas no cinema recente: a face e as rugas, os olhos e a postura rígida, pronta a estalar. Os nervos faiscam e nós sentimos que a morte se aproxima, mais uma vez...
Também Philip Seymour Hoffman dá uma dimensão fortemente física à sua personagem, Andy Hanson, o filho mais velho do casal Hanson. O desconforto com o seu próprio corpo está presente na aparentemente inútil cena de abertura: sexo no Rio de Janeiro, intenso, escaldante, ao mesmo tempo que disforme e animal. Percebemos, instantes depois, que os ares do Rio produziram um milagre em Andy, na medida em que este sempre tivera problemas em satisfazer sexualmente a sua mulher, Gina Hanson (Marisa Tomei). Com ela, Andy não fala de emoções: definitivamente, isso é "coisa entre homens" neste filme.
Andy procura esconder o complexo com o corpo, através do dinheiro (desviado ou não) e das drogas. Só assim consegue aliviar a dor de estar preso ao corpo que o tornou no "patinho feio" da família; que o fez partir para a vida com uma desvantagem que, por exemplo, o seu irmão, Hank Hanson, nunca teve. Com efeito, Hank (Ethan Hawke) é a antítese de Andy : um looser, sem dinheiro, divorciado de uma mulher que o desconsidera e com quem teve uma filha exemplar, mas que dificilmente se orgulha do pai que tem. Contudo, foi sempre "o menino bonito" da família Hanson; aquele a quem nunca faltou a protecção e carinho que Andy nunca teve. E, pior ainda, um amante irresistível para a mulher deste último...
Essas duas personagens, dissecadas por dentro e por fora pela câmara de Lumet, vão-se juntar para, sem esforço, poderem resolver todos os seus problemas: seja fugindo para o Brasil, onde "o corpo funciona"; seja provando à filha que não é um "falhado". Não é de admirar que o filme se inicie praticamente in media res: depois da cena de sexo no Rio, temos a cena do assalto, momento que decidirá o futuro dos protagonistas. Depois o filme recupera, em jeito de relatório policial estilhaçado, as diferentes perspectivas em causa.
O recurso a uma montagem à la "Rashômon"/"Elephant" é justificada pela complicadíssima teia de acontecimentos que se desenrola a partir da cena do assalto, o olho de um furacão que varre a família Hanson do mapa. Este artifício não retira a crueza que Lumet quis imprimir neste conto terrível sobre "a maldade que existe no mundo", como diz a certa altura a única personagem que (prescientemente?) sempre se dedicou ao crime, mas que nesta intriga apenas comete uma violação: a de contar a Charles Hanson a mais terrível das verdades.
Voltámos ao cinema duro e "sem esperança" que Lumet fez tão brilhantemente (sobretudo) nos anos 70, de "Serpico" a "Dog Day Afternoon", passando pelo próprio "Network". Na realidade, não exageramos se dissermos que a brutalidade de "Before the Devil Knows..." é tão desconcertante quanto sabemos que este poderá ser um dos últimos filmes de Lumet, realizador que fez o seu primeiro filme há 51 anos, o inesquecível "12 Angry Men".
Nada aqui parece encaixar no tradicional filme testamental: é um regresso às origens do seu cinema, certo, mas também é uma radicalização da sua visão do mundo, que não esperávamos nesta etapa da sua vida. Choca-nos pela forma como filma a personagem mais velha: Charles Hanson, repetimos, estrondosamente interpretada pelo grande Albert Finney. Esta não tem um minuto de descanso: a dor atravessa-lhe o rosto e ressoa nas poucas palavras que balbucia ao longo de todo o filme. A vingança que perpetra no fim, cheia de ódio e desespero, não traz qualquer alívio. Os seus passos finais, em direcção "à luz", são a mais difícil admissão no Paraíso. Será isso que Lumet espera para si mesmo?
Ler mais aqui: IMDB.
5 comentários:
Concordo, é uma das melhores estreias deste ano, valeu a pena esperá-la. Mas acho que seria melhor se não tivesse tantas cenas redundantes e se aprofundasse mais a personagem da Tomei.
Fiquei com medo no começo de que Lumet se tinha rendido aos "artifícios da montagem" e optado por esta construção elíptica, repleta de flashbacks explicativos,sem que tivesse muito a dizer... Mas o filme, de facto, tinha de ter esta visão estilhaçada, uma vez que cada personagem é um mundo que se transforma irreversivelmente a partir daquele assalto. Era preciso contextualizá-lo e depois avançar com as "consequências".
As cenas redundantes servem para acumular nervos e raiva, a tensão é quase insuportável neste filme - porque, de facto, tudo corre mal e não há tempo para pensar. A repetição (que naturalmente existe) penso que serve para manter o espectador suspenso nesse estado de espírito: inquieto, impaciente, tenso e derradeiramente curioso.
É um jogo de nervos.
Tomei, actriz que considero sobrevalorizada, tem um papel reduzido que também acho que se justifica, tendo em conta a sua função na narrativa: não mais do que, ponto 1, expor a impotência de um contra a fogosidade de outro e, ponto 2, torná-la no segundo objecto de cobiça entre os dois irmãos (depois do dinheiro...).
É muito "clássico" este filme, que é um caper movie, mas também tem toques de noir (sem a femme fatale, mas com a mulher sonça que exibe o corpo para alimentar os seus vícios fúteis).
PS: Estive há pouco tempo a ver as semelhanças entre "We Own the Night", "Cassanda's Dream" e este "Before the Devil...". Três filmes que tenho como das melhores estreias do ano e que nos contam histórias de crime fratricida.
Também me lembrei de "Cassandra's Dream" e "Match Point", embora não seja grande admirador do primeiro. Não me tinha ocorrido "We Own the Night", mas concordo que é dos melhores do ano - o meu preferio, aliás.
De facto as histórias de irmãos parecem dominar este ano, e esta aproxima-se da eloquência cinematográfica de We Own the Night, para mim um dos inegáveis filmes do ano. Concordo com o que dizes acerca do filme, surpreendente e devastador. E sim, sem uma simples nesga de esperança ou redenção. Se for mesmo o último filme de Lumet, será algo para nunca esquecer.
"Se for mesmo o último filme de Lumet"
À boa moda portuguesa, bato na madeira por isso.
Abraço
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