quarta-feira, 2 de maio de 2012

Michael (2011) de Markus Schleinzer


Poderosíssimo filme, que resiste bem à mais simplista das sinopses: "Michael" não é um filme sobre um pedófilo e a sua vítima, um rapaz de 10 anos que passa grande parte do dia trancado na cave de uma casa impecavelmente limpa por dentro, totalmente anónima por fora. Não, "Michael" é uma história que se vai construindo, sem etiquetagens prévias, num registo cru e literal, centrada num homem (a interpetação do actor, Michael Fuith, deixa marcas) e na relação que tem com uma criança. Ele tem com ela uma relação mais do que "apenas" alusivamente paternal, como percebemos na seca cena em que Michael, o homem, lava o pénis depois de uma visita à cave.

Ora, por que digo que "Michael" não é aquilo que uma típica sinopse possa dar a entender? Porque "Michael" rejeita a ironia mórbida ou o exercício do choque pelo choque - estratégia muito cara a outro cineasta austríaco, Michael Haneke, com quem Schleinzer trabalhou como "casting director"  -, na realidade, a força deste filme gera-se não na "estranheza de tudo", mas na ideia de normalidade, de um  quotidiano completamente plano.  As cenas sucedem-se como se tudo fosse normal? Não, "Michael" suprime os "como se" ou outro género de recursos retóricos, minimamente, moralistas... É clínico, de um distanciamento perturbante, sim, mas também não se serve em momento algum das personagens para "jogar" subrepticiamente com os limites do espectador.

As personagens comportam-se, de facto, dentro desse registo, ia escrever, natural, mas, de facto, não há nada mais "mecânico" ou "automático" ou dessensibilizado do que o dia-a-dia de pessoas comuns - um pedófilo é uma pessoa comum? Um sequestrador e abusador de crianças pode ser filmado como sendo um de nós? Como aceitar isso? Bem, talvez nestas interrogações resida a força e o desconforto deste filme, que, ecoando o drama horrífico de "O Monstro" austríaco, rejeita soberanamente os lugares-comuns e os pré-juízos do discurso mediático.  Michael é um sequestrador e é doente. Schleinzer não o diaboliza, aceita-o como um "facto da vida" e a situação do rapaz é vista e dada a ver, igualmente, dentro dessa normalidade, uma normalidade que se interrompe quando entra em cena o sexo ou quando se apagam as luzes ou quando se fecha a porta pela milésima vez (e não é preciso filmar mil vezes a porta a fechar para sabermos que esta foi fechada mil vezes, mais ou menos, da mesma maneira e às mesmas horas).

A normalidade é interrompida nessas cenas, ainda que, para o meio do filme, por força dessa rotina marcada muito silenciosamente pela culpa e o horror, até a interrupção acabe por se normalizar*. Por isso, não sabemos se a última imagem (a mãe de Michael abre a porta do quarto secreto...) é um "Enfim, a liberdade!" ou um "De novo, o cativeiro...". Outro cativeiro, aquele do qual a criança não se libertará mais. Poderosa conclusão inconclusiva que faz da neutralidade psicológica de todo o filme a chave que abre, serenamente (= perturbação não perturbante), a porta de uma distorcida mente humana, uma mente ainda-assim-humana.

("Michael" estreou hoje em Portugal, no festival IndieLisboa. Não será reexibido. Este filme, que enregelou o último festival de Cannes, tem todos os condimentos para ser um pequeno sucesso de público, aqui como em qualquer outro país. Até ver, foi um dos pontos mais altos do Indie, o que já é muito.)

* - Dou-vos um exemplo superior desta situação: é ou não é normal que o rapaz, sequestrado na cave há muitos anos (sentimos), fique chateado, profundamente chateado, quando sabe que Michael falhou a sua missão de lhe arranjar companhia? É normal. É neste "é", inabalável, à margem de qualquer discurso unívoco da "boa moral" contra a "má moral", que se constrói todo o filme.

1 comentário:

Sam disse...

Uma opinião que, após ver recentemente o filme, está em total oposição à minha. :)

MICHAEL quer ser tudo e acaba por ser nada: moral e imoral, banal e perturbador, distante e íntimo, formal e informal, diabólico e mundano... Por outras palavras, não chega a lado nenhum, nem sequer em intenções.

Não lhe tiro o mérito de querer desafiar a moralidade do espectador durante e após a sua visualização. Mas sou capaz de encontrar, até no panorama dito mainstream, melhores filmes "morais".

Cumps cinéfilos.

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