domingo, 6 de novembro de 2011
Killer Joe (2011) de William Friedkin
"Killer Joe" é Friedkin a, por um lado, levar mais longe certos aspectos do seu filme anterior, "Bug", e, ao mesmo tempo, a resistir a outros aspectos do mesmo filme, que se produziam, sobretudo, nas entrelinhas. A literalidade de tudo em "Killer Joe" é a primeira coisa que pode chocar o seu público, como terá chocado parte da imprensa e, seguramente, parte do júri do último Festival de Veneza; é também ela que pode fascinar quem, por exemplo, pediu a plenos pulmões o Leão para Friedkin - e não foram poucos.
De qualquer modo, "Killer Joe", como digo, intensifica o dispositivo teatral de "Bug" (os dois são originariamente "peças de teatro"), mas, ao mesmo tempo, livra-se do discurso politizado sobre os media e a sociedade (o securitarismo pós-11 de Setembro). Claro que poder-me-ão dizer que "Killer Joe" é o retrato de uma certa América, uma América que já conhecemos em filmes dos Coen ou de Tarantino, certo, mas aqui há um dispositivo que abstractiza mais do que solidifica esse retrato. "Killer Joe" existe para culminar na última enorme sequência, espacialmente concentrada na roulotte e que implode dramaticamente aí, à volta de uma mesa mal posta e uma refeição fast-food de KFC para toda a família classe média baixa texana se lambuzar depois da reza da praxe e os falsos discursos de "amor e solidariedade" para o mundo... O político não vai mais longe do que isto, neste último filme de Friedkin - algo que lamento, pelo menos, tendo em conta a fortíssima filiação formal e "contextual" que este filme partilha com "Bug", mas, de qualquer modo, em relação a este "sobrevive" o tal dispositivo, que nunca esteve tão bem oleado... como a "máquina de potência", leia-se, como a "máquina de in-potência" que é o protagonista que dá título ao filme.
Joe é 100% estilo, é 100% texano, mas um 100% tão preciso quanto a sua expressão numérica. Tudo nele - sobretudo, a sua patológica obsessão pela pequena Lolita do filme (Dottie) - é cronometrado, pensado ao milímetro, "protocolizado", ele é um detective e um assassino ao mesmo tempo, mas ele não é dois, não alimenta "vida dupla": ele é, de facto, um detective-assassino ou um assassino-detective (a ordem não interessa), alguém que auto-legitima a sua acção com toda a prática e retórica procedimentais, processuais/negociais, próprias de um burocrata do Estado. Ele age só em conformidade com o "acordado" e segundo as suas leis - não tão diferentes quanto isso, pensará ele, das leis do Estado.
Os gestos de Joe (mesmo quando reduzidos a zero) são pura coreografia maquinal, de "Estado", como se o detective se alimentasse do assassino e vice-versa. Ele produz a perfeita UNIDADE entre a lei e o fora-da-lei. Os mecanismos conceptuais protegem-no - a certa altura a pequena lolita diz "até dizem que a maior parte dos polícias não chega a usar, por uma vez que seja, a sua arma", ao que Joe replica "there is a lot of paper work to do". Joe di-lo, seguramente, por experiência própria, mas sem menosprezo heróico, texano, pelo "paper work" - bem pelo contrário! Joe sabe que o "paper work" é que faz a farda, à xerife lendário, que ele enverga (a burocracia é condição sine qua non para o seu "estilo"), Joe é um "proud detective" e, se virmos, se calhar, até tem "razões" muito objectivas para o ser.
Aqui está, enfim, a complexidade (política? Sem dúvida!) da personagem principal deste último filme de Friedkin, a complexidade decorrente do seu "robotismo administrativo" que choca com o desleixo da saloiada que decide contratá-lo para um trabalho sujo. Joe é impecável e todos os outros protagonistas do filme sabem que não o são, sabem que não podem nada contra ele. E é, a partir daqui, que a omnipotência de Joe se transforma num burlesco sobre a sua aparente "impotência sexual", encenado, numa farsa completamente over the top, excessiva e ultrajante, na sequência final, mas já prenunciado na cena de "strip tease ao contrário" depois do date na roulotte com a pequena, doce e ingénua, Lolita (pureza que não mancha o lado impecável de Joe).
Friedkin trabalha, pontualmente - leia-se, ponto a ponto -, para criar as condições necessárias para que Joe se vá revelando até à apoteose final, grotesca, epicamente grotesca. A cena da perninha frita de KFC como segundo falo de Joe lembra as taras sexuais de Frank Booth em "Blue Velvet": há uma impotência que é, enfim, uma in-potência - o sexo é impraticável, é demasiado sujo em si mesmo, demasiado terreno, para um homem-máquina como Joe, por isso, ele usa um strap-on de frango frito. Enfim, por alguma razão os olhos de Joe "magoam", como diz a pequena Dottie. De facto, o rosto de McConaughey (actor do ano) é liso, 100% inexpressivo, de impenetrável leitura. Dito de outro modo: em momento algum, sentimos que conseguimos antecipar o próximo gesto de Joe, apesar de este gesto, quando surge, aparecer como o mais exacto e racional possível no segundo a seguir. Ele age de acordo com o acordado, mas age completamente fora do esquema daquela família, fora do nosso esquema, fora do que a expressividade humana deixa (quase sempre) entrever.
Joe, que age em conformidade com um quadro de princípios e procedimentos, é uma potência que se gera por obrigação burocrática, uma potência que se gera na impotência - a sua impotência de ter "olhos de gente". Joe é que empresta ao filme a tal "literalidade" que mencionei no início deste comentário; é ele, com a sua psicose - potência impotente, ou impotência potente -, que cronometra cada partícula que cabe neste filme. Por isso, "Killer Joe" é cinema desafectado e desafectante; cinema frio (cool) ao qual respondemos com a única arma possível - a gargalhada provocada pelo mais grosseiro e imprevisível "humor negro" -; é coisa ultra-articulada nos pontos, ultra-desarticulada nas linhas que os ligam entre si, que termina chocantemente com o primeiro esboço de emoção: uma expressão - de contentamento, talvez - no rosto - outrora 100% liso, 100% não-humano - do detective-assassino que também é o mais cabrão dos assassinos-detectives.
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3 comentários:
Onde você assistiu o filme?
Nao foi lançado em nenhum circuito comercial ainda. Apenas em festivais. Sou um grande fa do Friedkin e meu receio é que este filme nem seja lançado no Brasil. Terei que recorrer a internet para assisti-lo. E ainda assim o mesmo nem na internet está ...
Olá nardi,
Assisti ao filme no Lisbon & Estoril Film Festival. É normal não estar na net, porque nem nos Estados Unidos terá saído comercialmente. Deverá sair ao longo do ano, parece-me, por isso, é uma questão de tempo. Aguardar, se possível, a salivar.
Excelente visão deste filme, com a qual identifico-me plenamente.
É o género de título sujo, trashy e atmosférico pelo qual nutro, na grande maioria das vezes, simpatia cinéfila. E agrada-me ver que Friedkin não perdeu o toque manipulador (tão bem!) demonstrado n'O Exorcista ou em Cruising.
Dos melhores que vi este ano.
Cumps cinéfilos.
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