terça-feira, 11 de outubro de 2011

Sangue do Meu Sangue (2011) de João Canijo (I)


O espaço em Canijo tem uma dimensão ontológica. Algo que não encontramos facilmente na obra de outro cineasta, salvo, talvez, Yasujiro Ozu. Mas por quê ontológica? Porque em nenhum outro cinema compreendemos tão bem a importância que o meio tem na "forma" como as emoções se cosem e descosem entre si. Emoções familiares, no caso de "Sangue do Meu Sangue", mas isto não é novidade nenhuma: já "Noite Escura" e "Mal Nascida" dissecavam bem fundo, sem medo de dessangrar, uma família, um organismo construído "pedaço a pedaço" pela câmara fluída, diríamos até, "já arterial", que quanto mais filmava mais ganhava corpo à nossa frente.

Em "Sangue do Meu Sangue", temos o corolário desta mise en scène baziniana, onde a câmara atravessa, em profundidade, o espaço de uma casa familiar no bairro Padre Cruz e, a par dele, onde a câmara aprofunda, a partir de cada rosto e de cada gesto, as relações entre os membros da família, que, como todos os membros, são parte de um corpo uno e múltiplo ao mesmo tempo. A câmara marca o território nesse corpo, o da "casa" e o das "emoções". Mas em ambos as coordenadas são claras, porque, como bem revela este como os outros já citados filmes de Canijo, essas são também as grandes coordenadas genéricas do cinema - e é aqui que o "espaço" ganha a tal "dimensão ontológica" que afirmei tão peremptoriamente no início.

Porque esta casa de família - como todas... - faz-se de divisões: X quartos, Y casas-de-banho, normalmente apenas uma cozinha, normalmente uma sala, etc... Como na montagem cinematográfica (dispositivo que separa para juntar - não é essa a função paradoxal do corte?), uma casa constitui-se na sua própria divisão. Ora - diz muito eloquentemente Canijo - as relações humanas, sobretudo, as familiares, como corolário, também "funcionam" assim.

Enfim, a família de "Sangue do Meu Sangue", que circula nas artérias de uma mise en scène total, disse, e penso que bem, ultra-baziniana, apresenta-se a nós, desde o primeiro instante, como uma multiplicidade sob o mesmo tecto; uma multiplicidade unida (= mantida una) pelas suas divisões. Os sobreenquadramentos constantes, em espaços exíguos, produzem um raccord puramente espacial (por onde circulam gente e sons), só possível graças a uma câmara que, movendo-se "entre muros", apenas procura registar, isto é "seguir as coordenadas de...", o dia-a-dia pulsante de um organismo familiar típico - esta é uma casa como as outras, e a sua universalidade é, como bem refere Canijo em entrevista, incontornável... os planos finais, a dar conta da imensidão do "habitat geral", constituem uma solução (quase neo-realista) que sintetiza a dimensão microcósmica desta história, algo que apenas esparsamente era detectável nas suas duas tragédias "à portuguesa".

Mas, retomando o raciocínio que iniciei, o espaço que Canijo nos mostra é um espaço dilacerado: o exterior e o interior, não esquecendo o entre (= as suas múltiplas trocas), ambos têm a sua cartografia e é ela, em suma, que importa revelar e percorrer. Amor e betão... amor transformado em betão, betão transformado em amor. Todas as famílias operam esta alquimia matricial, por isso, a casa morre quando é abandonada tal como uma família se ressente de uma "mudança" - o betão sai fora quando trocamos de casa, é preciso pôr o quotidiano, com os seus múltiplos rituais e sacrifícios, a operar o "entranhamento" do novo betão. Nem de propósito, esta ideia - a ameaça da mudança - é talvez a primeira a tirar o sono, desde logo, à principal mulher da casa.

O que determina "a forma" como o plot se vai desenrolar prende-se com a posição de cada personagem dentro de casa, por isso, a mãe (a sempre grande Rita Blanco) que está quase sempre na cozinha com a filha - e que dorme com ela no mesmo quarto - vai-se deixar envolver na história do adultério desta última com um professor; por outro lado, o filho - apetece dizer "da mãe" -, o delinquente da família que vive do tráfico de droga, está quase sempre em frente ao televisor com a sua tia protectora (exigentíssimo papel de Anabela Moreira), quem, com o desenrolar do filme, se vai deixar envolver pela história de uma dívida de "vida ou morte" que aquele contraiu com o seu principal fornecedor.

Enfim, as personagens-mártir (femininas - claro, estamos num filme de Canijo -) vão ser aquelas cujos corpos passam, subitamente, a co-habitar com uma ameaça-a-eliminar ao organismo familiar; uma ameaça "trazida" de fora. A casa serve de porto de abrigo, de quartel-general, de lugar de quarentena... a casa é o habitat primordial que será defendido, no mais terreno dos heroísmos, por duas mulheres. Mas, como já se disse, ele é um entre vários. E isso não é só sublinhado pelos planos finais dos créditos, mas ao longo de todo o filme por um inquietante dispositivo sonoro que Canijo já tinha usado nos seus outros filmes, mas que aprimora magistralmente aqui.

As divisões comunicam entre si precisamente através das conversas que se entrucruzam à distância: num primeiro "plano sonoro", temos as palavras que circulam "entre divisões", chocando umas com as outras, no limite - nunca atingido - da cacofonia; num segundo plano, temos o ruído dos electrodomésticos, mais notavelmente, os televisores sempre abertos a disparar relatos de futebol do Mundial ou telenovelas da TVI; num terceiro plano sonoro, temos os barulhos do bairro que são, enfim, um concentrado de múltiplos, acabados de descrever, primeiros e segundos "planos sonoros".

Ou seja, praticamente todas as cenas de "Sangue do Meu Sangue" - simultâneas, "contíguas" no espaço da casa, no espaço das relações - apresentam-se contaminadas por um "exterior" que as replica em eco, uma espécie de poluição sonora entranhante que atravessa em vagas sucessivas cada instante, sendo que cada vaga transporta consigo a sugestão que se estamos a ver este filme, nesta casa, sobre esta família, é porque não estamos a ver outro qualquer filme, noutra casa, sobre outra família do qual dele só ouvimos, à distância, o ruído inextricável, mas, ao mesmo tempo, "modelar" de um "macro-habitat" comum. Que, já agora, não é Padre Cruz, não é o "Portugal real"; é, antes disso ou depois disso (a ordem não interessa...), o mundo na sua durée.

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