quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Muito cá de casa: balanço caseiro do ano de 2012

Tradições são tradições. Passado que está pouco mais que um ano sobre o balanço caseiro de 2011, é tempo de rebobinar 2012 e tentar deixar aqui uma amostra do que melhor vi no "pequeno ecrã". Tento replicar o critério utilizado nos últimos dois anos, pelo que não estranhem se numa ou noutra escolha não haja, na realidade, uma correspondente edição em DVD ou Blu-ray pronta a ser adquirida. Volto a sublinhar: o mercado, sobretudo agora com o reboot da alta-definição, é muito expedito a reeditar títulos famosos, mas, pelo contrário, arrisca pouco no lançamento de obras que precisam de ser vistas pela primeira vez. Colecciono e divulgo filmes, mas nem sempre o mercado é suficiente para responder à minha curiosidade em relação às obras que ainda não mereceram a atenção devida.

Jordan Belson


O que me trouxe à obra do cineasta experimental norte-americano Jordan Belson foi um texto de Gene Youngblood, «The Cosmic Cinema of Jordan Belson», publicado na revista Film Culture na Primavera de 1970. O que me atraiu mais foi a associação feita entre a trip cósmica de "2001" e as experiências audiovisuais de Belson. De facto, vendo por exemplo "Allures" e "Samadhi", entendi a comparação, mas descobri mais: um cinema puramente sensorial que consegue lidar com formas abstractas e uma impressionante palete de cores sem se tornar minimamente "pictórico". É, de facto, um mergulho no cosmos, uma experiência no limite do Absoluto. Retroactivamente, pensar em "The Tree of Life" de Malick parece-me inevitável ante a monumentalidade destas imagens miraculosas. 

Peter B. Hutton


Peter B. Hutton terá sido "a descoberta" de 2012. A sua trilogia de Nova Iorque e o seu retrato de Budapeste produziram em mim um sentimento de assombramento despertado em cada plano, em cada fade out repentino (e há verdadeiramente um "Hutton's touch" nestes "blackouts" súbitos, como no grão do seu preto-e-branco matérico) ou em cada traço novo produzido a partir do (des)velamento de uma paisagem "comum". É o triunfo de um verdadeiro "olhar de cineasta" sobre o mundo.

Hotel Monterey


O segundo filme de Chantal Akerman, realizado quando tinha apenas 22 anos, provocou em mim um trauma do qual ainda não me recompus - e entretanto revi-o em sala, redescobrindo logo aí outro filme... É um filme feito com uma câmara que se movimenta - não certamente por si mesma - num cenário tão banal e universal como é um hotel de Nova Iorque, mas aí vamos percebendo que habitam fantasmas antes de habitarem pessoas. Quer dizer, os fantasmas aparecem-nos através da sua câmara, através do seu olhar - porque é ele, e não a câmara, que é específico e singular - sobre aqueles lugares... É um exercício sobre o tempo e o espaço com uma densidade estética e atmosférica terrivelmente hipnotizadora. A sua edição pela mão da Eclipse, numa caixa com outros títulos magníficos, é obrigatória para qualquer cinéfilo. 

Jalsaghar


Este "Salão de Música" de Satyajit Ray é um daqueles filmes que não existem, na realidade, não existe porque invoca imediatamente um lugar. É um lugar habitado apenas pela memória, uma memória traduzida pela música, mais concretamente pela reverberação de sons do passado que ainda encantam - e assombram - cada um dos recantos do grande salão caído no esquecimento. Experiência estética que faz de um clássico arco narrativo pretexto para a exibição das sonoridades mais ou menos secretas da música indiana, dada aqui a ouvir como música do mundo (não há exotismos, porquanto tudo isto nos toca). Um mundo cabe aqui no salão mágico, tal como o candeeiro de cristais cabe, reflectido, num copo de vinho. Terá sido o último Criterion que comprei em formato DVD, numa cópia impecável. Contudo, se puder arranjar o Blu-ray, ficará melhor servido.

The Leopard Man


Obra-prima absoluta que sintetiza tudo o que se deve saber em matéria de criação de atmosferas de terror. Jacques Tourneur, qual grande engenheiro do medo, compõe quadros de um preto-e-branco assombroso que, na sua sucessão, vão transformando uma historieta banal num trabalho de pura arte fílmica e, outrossim, de sedução e medo provocados pela indefinição dos seus mistérios mais escondidos... É o grande filme produzido por Val Lewton, obra que sobe mais alto que todas as outras na magnífica caixa editada pela Warner Home Video.

Man in the Wilderness


Richard C. Sarafian, para muitos reconhecido por ser o realizador de "Vanishing Point", foi o autor que mais me encheu as medidas neste final de ano. A sua magnum opus chama-se "Man in the Wilderness", filme com Richard Harris e John Huston sobre a fé, a Natureza e a luta pela sobrevivência de um homem traído pelos seus iguais. Algumas imagens são de uma beleza arrebatadora, mas o que fica é a viagem espiritual/a via sacra do protagonista e a comunicação íntima que vai estabelecendo com o meio natural que o envolve e interpela. Vi "Man in the Wilderness" e também o magnífico "The Man Who Loved Cat Dancing" numa edição da marca francesa Wilde Side Video, que recomendo também por causa da entrevista exclusiva a Sarafian que tem como extra (já a qualidade de imagem das cópias é algo discutível).

Les cousins 


Hesitei um pouco, mas este é o meu "Blu-ray de 2012" (seria "On the Bowery", mas já o destaquei, em DVD, no balanço realizado há um ano). Não falo só da qualidade da transcrição - que é óptima, de qualquer modo - mas acima de tudo do choque que foi o encontro com este filme de Chabrol, só o seu segundo filme, mas até hoje - a par de "Juste avante la nuit" - o que me perturbou mais. A forma como o registo do filme nunca estabiliza, entre a tragédia realista e a aragem livre e leve da Nouvelle Vague, é um dos elementos que me fez, simultaneamente, estranhar e entranhar este filme muito difícil de classificar. Jean-Claude Brialy compõe uma máscara poderosa que anula o rosto "sem máscara" - logo, desprotegido - de Gérard Blain, dois papéis imensos que aqui produzem uma espécie de reflexo invertido sobre o filme anterior - o primeiro - de Chabrol, "Le beau Serge" (também editado em Blu-ray). Vi "Les cousins" na edição Blu-ray da Gaumont, mas entretanto não faltam alternativas (ainda mais) simpáticas: edição da Criterion e, em breve, da Masters of Cinema. 

Milestones


Tendo sido a Cinemateca Portuguesa/ANIM responsável pelo restauro deste filme "esquecido" - mas muito amado por quem se lembra - de Robert Kramer e John Douglas, pergunto-me se não se perdeu uma grande oportunidade para uma distribuidora com coragem o lançar no circuito comercial. Não só isso não aconteceu, como também não foi em DVD que esta ficção documental ou este documentário ficcional chegou aqui a casa. Na realidade, foi pela mão da RTP2 que os portugueses puderam apreciar este monumento erigido a toda uma geração, aquela que, na América, fez a ponte entre os anos 60 e os anos 80. Fim de muitos sonhos - de uma certa ideia de liberdade - para o começo de uma outra vida, talvez, com menos sonhos - e, talvez também, com menos liberdade. 

O noir do ano


Aqui hesitei muito. Podia ter escolhido "High and Low" de Kurosawa ou, por exemplo, "Bob le flambeur" de Melville. Também havia a hipótese "The Big Combo" de Joseph H. Lewis, film noir que tem sido muito recuperado nos últimos tempos mas que me deixou um travo a decepção... Escolho, então, outro "filme grande" que tinha em falta, mas que não deixei fugir em 2012: "Touchez pas au grisbi" de Jacques Becker. Não é bem o típico film noir ou polar, diria que tende até mais para o gangster movie, uma espécie de "gangster movie de avôzinhos". Eis a visão (com a sua ponta de ironia) de um grupo de veteranos "senhores do crime" e a tentativa de um deles de procurar sair em beleza da "profissão de uma vida". Jean Gabin, o "herói", é excelente, mas o que gostei mais ainda foi a mise en scène de Becker, nomeadamente o seu gosto por pacientes "alternâncias de cenário" antes que o plot estale e chame a si todas as atenções. Muita classe.

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