1. O Olhar em Un chien andalou e Film
Logo nos primeiros instantes de Un chien andalou (1929), Luis Buñuel, na posição de actor sob a sua própria direcção, faz uma incisão no olho de Simone Mareuil. A câmara filma esta impressionável operação cirúrgica num plano rasgado, ampliando a imagem do olho e os efeitos da acção da lâmina de barbear, até que a retina se extravase sob a forma de pus. Antes da efectivação do corte, Buñuel refreia o grafismo chocante da cena, com uma imagem de contemplação quase metafísica da Lua (afinal, ao mesmo tempo que Buñuel executa impetuosamente a referida intervenção, a Lua é atravessada por uma nuvem fina e cortante). Se não fosse a sua enorme sugestibilidade, esta célebre cena de Un chien andalou não teria efeito. Não resultaria. (...)
O surrealismo é isto: a passagem de uma realidade para uma nova realidade, em que o pensamento humano se desembaraça dos ditames da razão, “alheio a qualquer preocupação de ordem estética ou moral” (Geada, 1985: 21). Da mesma forma, alicerça-se num certo automatismo psíquico; na recusa das barreiras psicológicas que se abatem sobre o inconsciente. (...)
O filme de Luis Buñuel não pretendia ser a transcrição do sonho, mas um simulacro deste; respeitava os “mecanismos estruturais do sonho”, mas não se entregava totalmente à espontaneidade da escrita automática. (...) Fiel a esta ideia, Buñuel recorre aos dispositivos convencionais de fazer cinema para “provocar e desorientar a capacidade racional e lógica do espectador” (Geada, 1985: 27) – o intuito é o de reproduzir virtualmente os efeitos do automatismo psíquico. (...)
Assim, retomando a cena do olho esquartejado de Simone Mareuil, por que Buñuel cega a rapariga, logo nos primeiros instantes do filme?
Entendendo a imagem na óptica de Edgar Morin (1997, 197-198), segundo a qual a “imagem (…) é simbólica por natureza, por função” e que “simbólico é tudo aquilo que sugere, contém ou revela outra coisa, ou algo mais que a si próprio”, a imagem-simbolo do olho rasgado merece mais do que uma simples análise descritiva; compele-nos à leitura do seu subtexto, onde, muito subjectivamente, jaz o esboço de uma resposta à pergunta acima formulada: talvez, simplesmente, porque o olho é supérfluo.
A vista é excedentária, e até potencialmente perigosa, para que o homem atinja a dita supra-realidade, ou surrealidade. Se a submersão no inconsciente libertará o Homem, a vista só poderá enfraquecer a percepção da realidade intrínseca ao ser. Sem olho, a rapariga podia, agora, ver-se melhor – “olhar para dentro” – e conhecer o “verdadeiro” mundo que a rodeia (...).
"Film" (1965) de Samuel Beckett e Alan Schneider (Parte III)
Algo semelhante se passa em Film (1965), obra conjunta de Samuel Beckett e Alan Schneider, em que Buster Keaton tapava os espelhos e os olhos que o rodeavam (os animais e a luminosidade intrusiva da janela) com o fito de evitar o seu próprio reflexo. Quando olhou para dentro, ou melhor, quando cerrou as pálpebras, Keaton viu-se a si mesmo e libertou um grito mudo de assombração.
Ora, esta interpretação, numa primeira análise, poderá contrastar com a metáfora oftalmológica de Theodor W. Adorno. Este, sendo um dos expoentes máximos do pensamento crítico de Frankfurt, advogava a existência de uma realidade externa ao homem, que, sem este o saber, o controlava – a indústria cultural, onde a cultura era mercadoria transaccionável, servia-se de uma bateria de estereótipos, impeditiva da desorganização mental, ou de qualquer esforço reflexivo por parte do espectador face a algo que, sem a predominância de certos estereótipos e clichés, seria alvo de incompreensão (Wolf, 2003: 91-92).
Adorno receava que os mass media, fenómeno recente e atordoante, tivessem “o efeito de produzir uma geral homologação da sociedade, permitindo e até favorecendo, por uma espécie de tendência demoníaca intrínseca, a formação de ditaduras e governos totalitários capazes, como o «Grande Irmão» de 1984 de George Orwell, de exercer um controle minucioso sobre os cidadãos (…)” (Vattimo, 1992: 11).
Os mass media assumiam, assim, um papel vital na manutenção do statu quo, que se traduziria na eternização hegemónica da classe burguesa, ideia também ela cara à imagética “de esquerda” buñueliana. Assim, segundo Adorno, “as pessoas podem não só ser privadas da verdadeira compreensão da realidade como também a sua capacidade de entenderem a experiência da vida pode ser fundamentalmente enfraquecida com uso constante de óculos fumados” (Wolf, 2003: 92). Isto é, a libertação só se dá no Homem clarividente, enquanto que aquele que “vê mal” continuará a sua via-sacra de submissão às ordens subliminarmente transmitidas pelos mass media.
Penso que, na metáfora oftalmológica, Buñuel inverte a situação: o cego vê mais que o clarividente. Porquê? Porque se “vê mais" a si mesmo (...). O primeiro, Adorno, pede às massas que abram os olhos e o segundo, Buñuel, numa perspectiva naturalmente diferenciada, e muito mais idiossincrática, pede ao Homem que feche os olhos para que se confronte com os medos e traumas que povoam o seu interior obscuro, ou seja, para que aceite o seu “eu” reflectido, segundo Beckett em Film.
(continua)
Bibliografia Citada:
- GEADA, Eduardo, O Poder do Cinema, Livros Horizonte, Lisboa, 1985;
- MORIN, Edgar, O Cinema ou o Homem Imaginário, Relógio d´Água, 1997;
- VATTIMO, Gianni, A Sociedade Transparente, Relógio de Água, 1992;
- WOLF, Mário, Teorias da Comunicação, Editorial Presença, 2003.
1 comentário:
Como músico, já musiquei este filme do Buñuel ao vivo por diversas salas e cineclubes do país. Conheço o filme de trás para a frente e tudo quanto diga respeito à sua concepção (no processo de composição da música, o meu livro de cabeceira foi "O Meu Último Suspiro" de Buñuel).
Saudações
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