O problema de "Le Havre" é o problema de todo o universo cinematográfico de tal modo personalizado que enfrenta o risco de perder fôlego tão rapidamente quanto desfilam e voltam a desfilar os elementos típicos dos seus "quadros com assinatura". Kaurismaki, como um Kusturica ou um Iosseliani, por exemplo, parece começar a padecer desse problema: o que outrora era uma "arte viva e nova" ameaça converter-se num museu de cera onde o que era vivo deteriora-se e o que era novo perde brilho. O esforço estético ou estilístico de conservação de um universo pode rapidamente degenerar num esforço museológico de conservação de uma assinatura. Problematizar o universo e desproblematizar a assinatura - na minha opinião, infelizmente, "Le Havre" faz o contrário.
Não que tenha deixado de suscitar simpatia, mais um punhado de bons sentimentos e até aquecer, aqui e ali, os corações sedentos de uma estética clássico-nostálgica tão benigna quanto a doença da mulher do protagonista (melhor: tão benigna quanto a mentira sobre a doença da mulher do protagonista...). Com efeito, Kaurismaki, isto é, o seu universo estilístico, não está totalmente encerado - como o de Kusturica - mas a ameaça de que venha a estar só me ocorreu agora, com "Le Havre" - para alguma crítica, tudo terá começado com "The Man Without a Past", filme que considero mais fresco e "vivo" do que esta sua mais recente obra.
Contudo, porque gosto de Kaurismaki, penso que as forças de "Le Havre" se confundem muitas vezes (diria, "demasiadas vezes") com as fraquezas de "Le Havre": é que os elementos de um discurso só o põem a discursar quando fazem algo para isso. O que aqui se passa é que os elementos do discurso kaurismakiano afirmam-se para dar conta da existência desse discurso - a auto-referencialidade gasta quase todo o combustível criativo aqui. Dito de outro modo: os elementos estilísticos de "Le Havre" afirmam-se para afirmar algo, mas pouco fazem para pôr esse algo em movimento e o transformar em "algo mais".
"Le Havre" está sempre no limite de ser uma sucessão de quadros onde Kaurismaki é o grande protagonista ausente. Há a cadela Laika que até merece referência no genérico de abertura (a Lucy que se cuide...) - é sobejamente conhecida a doce e simpática obsessão canina do cineasta finlandês -; há a iluminação "technicolor" ou os quadros vivos - a azul, a verde e a vermelho - que lembram os do pintor norte-americano Edward Hopper - algo que também não nos é nada estranho -; e há a tristeza alegre ou a alegria triste das suas personagens solitárias, para o caso, silenciosamente inebriadas por uma ideia de justiça mais moral e, não confessadamente filosófica ou utópica, do que propriamente societal - a personagem do inspector é várias vezes usado como peça crítica deste discurso que, por tantas vezes sublinhado, vira postiço.
Ou seja, os elementos que nos são familiares do universo "cosy" de Kaurismaki estão lá todos, mas aparecem presos à sua função auto-afirmativa, o que, na minha opinião, confere a "Le Havre" - e o seu ritmo sonâmbulo, a sua narrativa demasiado mastigada, também não ajuda - essa dimensão, diria, museológica onde tudo está no seu sítio para afirmar em que sítio está (os cameos de Pierre Étaix ou do chocantemente envelhecido Jean-Pierre Léaud são "graças para dentro" que se expõem, de forma ainda mais evidente, como peças de um velho museu...), onde nada é "baralhado" ou "mal colocado" para não gerar enganos.
Quase que conseguimos ler no subtexto qualquer coisa como: "Caros espectadores, isto é um "filme de Kaurismaki" e, por isso, não desespere que a cadela voltará a ser mostrada dentro de poucos minutos...e, como já é hábito, o concerto de rock esgrouviado que se segue promete retirar-vos, caros espectadores, da letargia cool em que mergulharam!". O rock esgrouviado em "Le Havre", outro número kaurismakiano típico que faltava referir, é o exemplo paradigmático do que corre mal aqui: o concerto, enfiado a martelo na história, tinha tudo para abanar, "desencerar" ou, acima de tudo, problematizar os outros elementos kaurismakianos do filme, mas acaba por surgir como mais um "quadro com assinatura" numa travessia algo árida pelo universo de um cineasta reduzido à sua sedutora simpatia. Nada mais.
3 comentários:
Concordo em absoluto. Belo texto.
Um abraço.
Obrigado Flávio. Infelizmente, é um texto "na negativa".
Abraço,
O único problema de "Le Havre"... é que acaba. Se durasse 16 horas continuava a sentir-me bem a vê-lo!
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