O mundo vai acabar. Os especialistas, os jornalistas, os líderes religiosos asseguram-nos disso. As nossas personagens, um homem (Cisco por Willem Dafoe) e uma mulher (Skye por Shanyn Leigh), entre as quatro paredes de uma sofisticada penthouse, preparam-se para morrer juntos. Ela pinta, lançando baldes de tinta sobre a tela, fazendo do impulso artístico uma espécie de condutor do ruído mediático que a atinge - curioso que destas experiências pictóricas resulte a imagem do círculo, do círculo da serpente que devora a própria cauda, sendo que a outra alusão possível é a do círculo incompleto que, centripetamente, concentra a espiral que é, enfim, a imagem do corpo da serpente enrolado sobre si mesmo...
Que ruído é esse que produz, mediatamente, o símbolo angustiante da dúvida que já não é dúvida, porque o fim é a única certeza? Na televisão, ouvimos - e vemos - Al Gore numa entrevista a Charlie Rose, imagens tão indistintas quanto familiares de rebeliões populares, grandes procissões religiosas, Dalai Lama a perorar sobre a ciência e a Natureza ou o real valor do dinheiro, um jornalista despede-se, para sempre, dos seus espectadores, etc. No computador, amigos e familiares aparecem para se despedirem das nossas personagens, uns festejam, tocam música, cantam e dançam, outras lamentam ou apontam responsáveis pelo fim do mundo, outras dão conta dos preparativos para o serão, etc. Noutro monitor, passam vídeos sobre meditação e filosofia zen. Dispositivos encaixados noutros dispositivos, mediações de mediações, medi(t)ações de medi(t)ações... a teia de Ferrara, que bem conhecemos de "Blackout" e do mais recente (magnífico) "Mary", está lançada. E, com ela lançada, o grande objecto de "4:44" é um teste, um teste que procura saber como é que aquele casal interpreta a acção catastrófica da informação - mais até do que a catástrofe propriamente dita... - que, muito contemporaneamente, o cerca. Há, de facto, qualquer coisa de behavioral no seu cinema, mas um behavioral que se contenta mais em tornar insolúvel do que solúvel o problema colocado. Quem disse que uma distopia de Ferrara, à Ferrara, ia ser um assunto de fácil digestão?
De qualquer modo, se o mundo vai acabar, não interessa deslindar os sentidos profundos da vida, se aquela pintura diz alguma coisa, uma verdade superior suplantá-la-á sempre. Se o homem diz à mulher que a ama, uma verdade superior suplantá-los-á. Se o homem diz à filha que a ama e à ex-mulher que talvez ainda tenha sentimentos por ela, uma verdade superior suplantá-los-á. E que verdade superior, inquestionável, consegue desnortear o raciocínio e asfixiar a dúvida? A verdade de um facto: o mundo termina às 4:44. Como diz a certa altura, num monitor, o guru budista, se a caneta não é caneta, não valerá a pena preocuparmo-nos muito sobre o por quê de usarmos a caneta para escrever ou mesmo o sentido daquilo que escrevemos, porque, na verdade, a caneta não é a caneta.
Esta confusão entre o mental e o real, bem como entre a representação e o representado está patente na poderosíssima cena em que Sye apanha Cisco a falar com a ex-mulher. Ela ataca-os depois de ouvir as palavras "desculpabilizantes" dele; ataca-os a ele e a ela, quer dizer, a ele, Cisco, e à sua ex-mulher, esta que está reduzida a uma "imagem de computador", que é, enfim, uma criação de software (puro ícone). Noutra cena, o rapaz vietnamita beija o computador de Cisco depois de falar, de novo, via Skype, com a sua família. De um lado, a tecnologia aparece como redução e desdobramento do mundo tão real ou concreto quanto o mundo pode ser - aliás, não será por acaso que o nome da protagonista (Skye) se confunde com o nome do próprio programa (Skype) -; do outro lado, Ferrara parodia uma certa "tecno-religiosidade", porquanto o ícone a que se presta devoção é-nos dado por uma superfície metálica, em forma de amêijoa (ei!, foi o outro guru zen da técnica, Steve Jobs, que se lembrou da analogia!), que lá vai tornando o mundo uno ou, pelo menos, trabalha para pôr em funcionamento essa ilusão - não é essa também a missão doutrinária/programática de uma religião oficial como é o catolicismo, religião da imagem, pela imagem, só imagem? (Também em "Mary" sentimos que o crucifixo "através do qual" a personagem de Whitaker fala com Deus é filmado como se fosse "mais um" dispositivo mediático, con-fundindo-se assim, funcional e ontologicamente, com o telefone, o monitor, a câmara de filmar... a tal complexa rede multimediática de imagens de imagens cara ao realizador norte-americano.)
A certa altura, no terraço, Cisco exclama qualquer coisa como: "Já estamos todos mortos". De facto, é tudo uma questão de tempo, mas a morte já opera dentro destas personagens, elas, em posse da informação que lhes chega, através da já mencionada multiplicidade de dispositivos mediáticos, remetem-se à meditação, dissecam sentimentos e reflectem sobre a possibilidade de haver escolha, temas que, noutro contexto, dir-se-iam puramente filosóficos ou especulativos, mas que em "4:44" se debatem como se fossem não parte, mas, precisamente, as únicas estratégias de sobrevivência que restam - a tal "escolha" que o amigo de Dafoe quer ver preservada até ao fim... mesmo que ninguém a possa pôr em discurso, em jeito de história moral para futura reprodução cultural; mesmo que nem o martírio ou o (mais secular) heroísmo seja já possível.
A ideia da "atitude certa" a tomar face à inabalável crença no "fim do mundo" - a dúvida aqui é também ela pura estratégia, ou é assim nitidamente encarada pelas personagens... - torna-se numa angustiante não-ideia, precisamente, quando conceitos como os de "certo" e "errado", "justo" ou "injusto" são reduzidos a pó ante a inevitabilidade deste assassínio cósmico "sem culpados". Cisco tenta culpar alguém no início, mas vê que é infrutífero fazê-lo: "ninguém é culpado". Apesar das aparições televisivas de Gore, o discurso de "4:44" surpreende-nos por não enveredar pelo demasiado fácil "somos todos culpados", típico da retórica dos movimentos ambientalistas. Não, o que a personagem diz e sente é: "ninguém é culpado", não há culpados, isto é, nem o fardo da culpa poderemos carregar até à morte, ou melhor, nem a culpa nos distrairá da morte...
As personagens de Ferrara aparecem-nos mergulhadas neste quadro mental: amoral, nihilista, assente numa fé inabalável no fim, concomitante a uma certeza fundamental na ausência de Deus - quantas vezes, mesmo nos instantes de maior desespero, é Ele invocado? Para as personagens de Ferrara, a certeza está no "agora" que Cisco diz, com o coração encostado ao coração de Skye, a certeza está no facto de os dois irem partir juntos, como ela diz, mas nunca, em momento algum, Deus é usado como pretexto da dúvida, esta dúvida impossível de alojar - ou é possível resolver-se a ideia de fim fazendo-a cair no vazio de qualquer moral ou de qualquer verdade? Digo de outro modo: será possível fazer-se um filme assim, filmado ao ritmo das angústias do homem contemporâneo, sem questionar, ao mesmo tempo, o carácter transitório de tudo, isto é, o carácter medial de tudo? Parece que aquele branco final, a "luz" (absolutamente não divina) para a qual os dois amantes caminham com o olhar e com a alma resume precisamente essa angústia primordial de, à falta de fins, ou melhor, perante o devir medium de tudo, estarmos condenados a cair no abismo. No branco. Branco como ausência de informação. Branco como princípio do fim, um princípio sem "meio", um princípio-fim "sem media". Finalmente.
("4:44 Last Day on Earth" foi exibido hoje no IndieLisboa, em estreia nacional. É expectável que o filme seja distribuído comercialmente, ainda no mês de Maio. Se não o viu hoje, é fundamental que o veja nessa altura.)
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