sexta-feira, 27 de abril de 2012

Into the Abyss (2011) de Werner Herzog


Se fosse só um panfleto político contra a pena capital, então diríamos imediatamente aqui, nestas linhas, que Capote já havia escrito "In Cold Blood", Richard Brooks já o havia passado brilhantemente para o cinema e um sem número de realizadores (exemplo de Tim Robbins em "Dead Man Walking" ou Clint Eastwood em "True Crime") já souberam armar retoricamente quem considera, como diz Herzog perto do fim do filme, a pena de morte como uma coisa "muito Velho Testamento. Olho por olho. Dente por dente..." Também se fosse apenas um filme sobre a vida amorosa-sentimental "entre grades" de terríveis homicidas, tínhamos, por exemplo, de responder com um dos episódios mais bizarros de "First Person" de Errol Morris, sobre uma mulher com um fetiche - ou uma obsessão sexual psicótica - por serial killers. Quer dizer, se "Into the Abyss" fosse apenas isso, então estaria aqui a dizer "não muito obrigado, já fui servido e bem servido".

O que é notável neste filme de Herzog, originariamente pensado como "mais um episódio" de uma série do canal de televisão Discovery sobre os corredores da morte nos EUA, mas que acabou por se autonomizar,  é a apropriação notável que o cineasta alemão faz do material que, fria e secamente, nos mostra. Se nalguns casos (veja-se o "Cave of Forgotten Dreams"), Herzog parece não controlar ou conduzir bem aquilo que filma, neste caso, é extremamente bem sucedido a transformar a história de vida daquelas pessoas, tocada por uma tragédia inominável, num "objecto do seu cinema". E quando digo cinema, falo da possibilidade - muito curiosa - que se abre, que virtualmente se potencia, em cada testemunho desta história "real" e que nos remete, imediatamente, para imagens que são, por excelência, constituintes do universo de Herzog, sem, com isso, sair fraquejado o seu, aqui necessariamente perturbante, valor documental.

O quero dizer com isto? Veja-se como o início do filme rima com o final. No início, a câmara de Herzog revela-nos as imagens (do pensamento) do padre que procura fugir às imagens da morte, refugiando-se menos no "jogo" de golfe e mais na contemplação da frescura da relva viçosa, das árvores e dos animais que "animam" a paisagem. Especificamente, e (claro está) incentivado por Herzog, o padre transforma uma pequena história que o envolveu a ele e um casal de esquilos numa parábola metafísica sobre o lado mais efémero da vida e a impotência do homem ante a injustiça da sua Lei "sem Deus". Esta imagem, que não desvelarei por completo aqui, sintetiza bem não só o tom de todo o filme, em relação à pena capital, mas também em relação às pessoas e vidas que estão "em jogo", mas também abre a primeira brecha para o abismo, um abismo que não é de morte, mas de pura vida. Parece uma contradição, certo, mas o que esta imagem inicial - e as outras vão confirmar - provoca é a invocação (antecedida de uma evocação) de um espaço que pertence, por inteiro, à abordagem panteísta, não de um Deus-tudo, mas de um tudo-Deus, de uma Natureza-Deus, bela, tolerante, mas também cruel e injusta, que marca a grande Narrativa do cinema de Herzog, de "Aguirre" a "Fitzcarraldo" até, inclusivamente, ao menos conseguido "Grizzly Man", só para dar alguns exemplos.

Esta impressão vai ganhando força à medida que o filme avança. Permitam-me agora que salte o meio - o tal "traçado" como se diz a certa altura, que separa o nascimento e o fim, no caso, do próprio "abismo" de Herzog - e vá directo para o fim: o oficial responsável que acompanha protocolarmente os presos até ao momento da execução volta a encher o filme de imagens não-filmadas que remetem para essa Natureza que tolera, mas que também não cessa de nos lembrar como podem ser absurdas as Leis dos homens. Resume ele do seguinte modo o seu novo mote de vida, após ter "caído em si" quanto ao significado moral das mais de 120 execuções que acompanhou: "agora é seguir a vida e olhar para os pássaros". De novo, uma imagem (do pensamento), que vem da Natureza, "põe em abismo" imagens do cinema de Herzog: a Natureza é liberdade, mas também é condenação, porque está lá para evidenciar os limites da nossa condição ("alterar a lei é tão simples", desabafa profundamente esse homem que tenta viver pela primeira vez, longe da morte, próximo dos pássaros, mas, de qualquer modo, fazendo o seu fatídico "traçado"...). Ainda assim, a Natureza é redenção também: Ela lembra e Ela ajuda, Ela relativiza tudo e Ela guia-nos.

Concentremo-nos, agora, no "meio" de "Into the Abyss": o que nos diz a história dos macacos e dos jacarés que aterrorizaram Michael Perry quando ainda era um homem livre, isto é, quando ainda não tinha morto "a sangue frio" três pessoas e, por isso, bem antes de ter sido engaiolado numa prisão para ser abatido, logo a seguir, como se fosse um animal doente? Este homem com rosto de rapaz que, entre as paredes brancas - clautrofóbicas - da prisão, conta os dias que lhe faltam para, como diz ele, "voltar a Casa", narra na primeira pessoa uma história aparentemente insignificante da sua vida que, pela câmara de Herzog, se converte rapidamente numa espécie de narrativa mítica da floresta, eivada de sinais de que Michael - que confessa ter querido fazer mal a um macaco... - seria, talvez, um filho rejeitado da Natureza ou alguém, à nascença, inadaptado a Ela, tal como - ou como corolário? - em guerra com o Mundo. Pessoa deslocada e tragicamente marcada pelo destino. O padre diz, de facto, qualquer coisa como "Deus deve ter as suas razões para que as coisas sejam assim e não de outro modo".

Todas estas imagens religiosas da Natureza são produções mentais das pessoas, de carne e osso, que Herzog captura com a sua câmara. "Into the Abyss" vive na e da tensão entre essas imagens telúricas e panteístas do mundo - muito caras ao seu cinema, na ficção como no documentário, mas que aqui estão apenas sublimadas nos testemunhos - e o fechamento claustrofóbico lembrado, sempre, pela omnipresença daquelas sinistras paredes brancas, assépticas e, contudo, a cheirar a morte por todo o lado. Michael diz que procura não pensar nas paredes, porque, caso contrário, enlouqueceria. Herzog, pela conversa que tem com ele, parece oferecer essa possibilidade de fuga, fazendo-o vaguear em palavras para um território que acaba por o rejeitar. Herzog, que gosta de jacarés e macacos, e ursos e outros animais, Herzog, que reconhece a sua nobreza tanto quanto a sua implacabilidade, Herzog, o homem humano, bem avisara que não estava ali por gostar de Michael...

("Into the Abyss" foi exibido hoje no IndieLisboa. Voltará a passar no dia 4 de Maio, sexta-feira, às 19h00, no Grande Auditório da Culturgest. Se não o viu hoje, tente não o perder nesta data.)

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