2. O Olhar e o Olhado em They Live (II)
A analogia com a metáfora oftalmológica é incontornável, uma vez que Carpenter atribui aos óculos fumados uma simbologia decisiva, que constitui uma espécie de reinterpretação mordaz dos pressupostos da teoria crítica frankfurtiana. Todavia, os ditos óculos, ao invés de enfraquecerem a percepção do real, pelo contrário, levam Nada a ver para lá da realidade postiça que, pelos olhos, se lhe impunha.
Apesar de não reiterar a ideia de Adorno, que pedia à humanidade que arregalasse os olhos para “ver melhor”, Carpenter também se distancia da perspectiva Buñueliana, que é a perspectiva do surrealismo, segundo a qual a longa viagem em direcção à verdade se faz no interior profundo da psique humana e o olho, esse feixe de luz permanentemente exposto às infiltrações da realidade exterior, deveria sofrer o corte com a envolvência opressiva.
A visão turva de Nada foi suficiente para que este rompesse a grossa membrana que o separava do “mundo a nu” – já dizia Christian Metz (1981: 99) que ““Ver” não é já enviar qualquer coisa, mas surpreender qualquer coisa”. Esse casulo ultra-mediatizado, que segrega convulsivamente as demandas do sistema, tem no olhar virgem do Homem a sua principal fonte de combustão, sendo-lhe continuamente irrigadas sugestões e ordens, sob a forma de anúncios, noticiários televisionados, filmes, etc.: o cérebro é assoberbado de imagens redundantes, que reificam uma certa ideia de servilismo, ou de “zombificação”, face à ordem instituída. Carpenter desperta o torpor e mune Nada desses óculos iluminantes, que mais não são do que uma forma de o fazer ver menos para ver mais fundo.
O ataque aos mass media não seria tão desconcertante se Carpenter não recorresse, ele mesmo, a esse meio de comunicação de massa que é o cinema ou, em sentido mais lato, a designada “instituição cinematográfica” (Metz, 1981: 13). De facto, o cinema é “mais rico que a linguagem das palavras” (Morin, 1997: 215), (...) que suplanta o mais variado tipo de barreiras culturais e cognitivas, e que melhor penetra a psique humana.
Como diz Morin (1997: 229), “As salas são autênticos laboratórios mentais onde, a partir de um feixe luminoso, se concretiza um psiquismo colectivo”. Não é, por isso, de estranhar que, na aurora do cinema, se encontrem alguns dos maiores nomes do cinema dito panfletário. Um dos mais aclamados propagandistas desse período seminal é Sergei M. Eisenstein, realizador que manteve uma estreita colaboração com Estaline, durante mais de 30 anos. A ele foi justamente atribuído o epíteto de “pai da montagem”, mas que, no início de carreira, se propôs realizar a espantosa tarefa de “transformar o cinema e, simultaneamente, transformar o espectador” (Geada, 1985: 35).
Estas ideias constituem a chamada teoria da “montagem das atracções”, de inspiração pavloviana, que tinha por objectivo criar um cinema de estímulos, orientado para uma espécie de controlo primitivo das reacções e emoções do espectador. Com efeito, Eisenstein pretendia “que cada elemento do espectáculo pudesse iluminar a psicologia do espectador, influenciar a experiência individual e colectiva, orientar o seu modo de pensar e agir” (Geada, 1985: 35). A sala de cinema era também para Eisenstein um potencial “laboratório de mentes”, em que os estímulos emanados do ecrã (...) eram calculistamente lançados sobre uma plateia de cobaias humanas já adormecidas pelo poder hipnótico do artifício e da magia. Fora da sala, verificar-se-ia a concretização desses estímulos em reacções pré-determinadas (...) – eis o princípio basilar que hoje comanda o filme publicitário (Geada, 1985: 35). Apesar de Eisenstein ter assumido a “relatividade da montagem das atracções”, a verdade é que este nunca abandonou a “convicção da capacidade do cinema de interferir na realidade” (Geada, 1985: 35).
Imagens finais do filme "A Greve" (1925) de Sergei M. Eisenstein (Parte 23)
Com efeito, o próprio cinema de Eisenstein está repleto de mensagens de ordem; verdadeiras exaltações do orgulho russo, bem como mensagens de apelo à “ sublevação proletária” e à unificação das massas em torno de uma causa comum. O desenlace de A Greve (1925) é “um exemplo típico da montagem metafórica [que resulta de uma justaposição de planos cuja fricção possa produzir o entendimento de ideias abstractas] (…) em que a repressão policial dos trabalhadores é comparada com o abatimento do gado no matadouro” (Geada, 1985: 38).
A violentíssima imagem dos operários grevistas tombados no chão, mortos pelas balas do “patronato”, e o grande plano dos olhos de um operário a “encolherem-se” perante a brutalidade dos acontecimentos, são seguidos de uma mensagem forte: “E feridas indeléveis no corpo do proletariado deixaram sinal em: Lena, Talka, Zlatooyst, Varoslavl, Zaritsvne, Kostroma [listagem dos nomes dos operários que morreram a defender a causa revolucionária]”. De imediato, Eisenstein retoma o plano dos olhos do operário, que desta vez se arregalam, em sinal de aviso: “NÃO TE ESQUEÇAS! PROLETÁRIO!”. Da mesma forma, “ A mais grandiosa ideia do mundo – a ideia de progresso – toma forma ao mesmo tempo que uma gota de leite numa desnatadeira (A Linha Geral). Num bocado de carne podre fermenta a ideia revolucionária (O Couraçado Potemkin)” (Morin, 1997: 211).
Final de "Alexandre Nevsky" (1938) de Sergei M. Eisenstein
Outro exemplo: no final de Alexandre Nevsky (1938), depois do discurso proferido pelo herói mítico, o magnânimo portador da alma russa e o representante máximo da vontade colectiva de um povo, irrompem no ecrã palavras belicosas e apoteóticas, impressas sobre um plano-sequência que procura, a muito custo, enquadrar a infindável armada russa: “MAS AQUELE. QUE VIER AQUI. COM UMA ESPADA. PERECERÁ PELA ESPADA. ESSA É E SERÁ A LEI. DA TERRA RUSSA”. No fundo, em Eisenstein “as imagens são parábolas e símbolos de uma ideologia que se cria e toma forma” (Morin, 1997: 211). (...)
Esta (afirmação da) posição de impotência e passividade do espectador, ou a dimensão suplantadora do cinema face a este, conduz-nos ao paradoxo de Chrstian Metz (1981: 98): “O filme sabe que o vêem e não sabe”. Para o mesmo autor, “aquele que sabe” é o cinema enquanto “instituição”, ou seja, no exercício da sua função discursiva e ideológica. Já “Aquele que não quer saber” não é mais do que o texto, ou a história, que serve de capa às pulsões interiores, muito concretas, da obra. Entenda-se que, para Metz (1981: 95), o filme é um discurso “se o referirmos às intenções do cineasta, às influências que exerce sobre o público, etc; porém, o característico desse discurso, e o próprio princípio da eficácia enquanto discurso, é precisamente o de apagar as marcas de enunciação e disfarçar-se de história”. (...)
Podemos re-arranjar o paradoxo de Metz num exemplo alegórico: tenha-se um indivíduo que, no espelho, vê um reflexo opaco de si mesmo, mas, do outro lado, o seu “eu” projectado vislumbra, com maior clareza, o “eu” primeiro. De um lado, temos uma amálgama de gente – cuja individualidade se diluiu numa massa indistinta e homogeneizada de partículas humanas –, que consome indiscriminadamente o que vê, e crê irreflectidamente naquilo que consome. Do outro lado, eleva-se uma “realidade de fachada”, erigida por uma complexa rede conspirativa, sob a tutela de … “alienígenas”, que, através da acção obsidiante, quase orwelliana, dos mass media, vigiam o meio com uma nitidez desarmante. Como se, de facto, o mundo e as suas imagens formassem um tecido de mentiras (Mongin, 1997: 20).
Ora, Carpenter "filma um filme" que, num grande nódulo de ideias, acusa os media de conspirarem com o objectivo de destituírem o Homem do acto essencial de pensar. Nada quando põe os óculos, digamos que também põe os óculos em nós, por um efeito que Edgar Morin (1997: 107 e 127) chamaria de complexo projecção-identificação-transferência ou o também denominado ego-involvement. É sugerido ao espectador, esse “sujeito passivo na sala escura” (Morin, 1997: 119), que o que é verdade em They Live – a conspiração “alienígena” – é verdade fora de They Live – quando nos defrontamos com o terreno e o palpável, à saída do cinema.
Por outras palavras, Carpenter recorre a uma das armas de controlo social da era Reagan, o cinema, para as denunciar, usando, assim, um dos grandes mecanismos instituídos que o sistema pariu. De facto, Luís Miguel Oliveira (2003: 138) tem razão: “poucos filmes americanos serão assim tão “terroristas”…”.
(continua)
Bibliografia Citada:
- GEADA, Eduardo, O Poder do Cinema, Livros Horizonte, Lisboa, 1985;
- METZ, Christian, O Significante Imaginário, Livros Horizonte, Lisboa, 1981;
- MORIN, Edgar, O Cinema ou o Homem Imaginário, Relógio d´Água, 1997;
- OLIVEIRA, Luís Miguel, «Carta Negra a Enriço Ghezzi», in Textos CP, Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, 2003, pp. 137-138.
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