domingo, 26 de dezembro de 2010

Programação de cinema na RTP2 (XXXV): "o problema" pode bem começar aí...

DOIS MIL QUINHENTOS E VINTE

As críticas de Pedro Borges, da MIDAS Filmes, ao estado da RTP2 são devidamente contextualizados pelo panorama actual dos modos de ver cinema em Portugal. Este artigo de Vasco Câmara só vem dar conta de uma urgência: o gosto de ir ao cinema está-se a dissipar. Não por falta de interesse - visto que ele é manifesto pela afluência das pessoas aos festivais, até aos mais "alternativos" - mas pela ausência de uma "cultura de sala", que tem impedido as pessoas de integrarem as idas ao cinema nas suas rotinas de fim de semana.

Pedro Borges chega mesmo a criticar a multiplicação dos festivais de cinema e, na minha opinião, com bastante pertinência: "O público dos festivais só vai a festivais, não vai ver os filmes no resto do ano. Houve uma altura em que as pessoas diziam que não esqueciam o ano em que viram no King o 'Chungking Express' [Wong Kar-wai] ou 'A Bela Impertinente' [Rivette]. Os filmes marcavam a vida das pessoas. Isso hoje não acontece. O cinema tem que existir 365 dias por ano e não existe. O Estado tem de descobrir, nas cidades fora de Lisboa, parceiros que queiram mostrar cinema 365 dias por ano".

Olho à minha volta e sinto, mesmo entre o público mais cinefilamente filiado ou pretensamente cinéfilo, um desinteresse crescente pelo que as salas oferecem, muitas vezes, tantas vezes, aliás, em virtude de idas ao DocLisboa ou IndieLisboa. Mas é um "ir ao cinema" como quem se atira de cabeça para o vazio; não há, a meu ver, uma verdadeira excitação em "seguir" o evoluir de um universo ou de um conjunto de obras - ou mesmo de uma indústria! Espera-se, sim, que tudo isto lhes surja em pacotes retrospectivos pela mão dos festivais da moda ou, pontualmente, pela mão de esta ou daquela editora de DVDs - mas, para uma oferta interessada, só temos a excelente MIDAS. A (fome de) descoberta é mínima e a capacidade crítica ressente-se.

Depois, ainda mais acertadamente, Pedro Borges acrescenta: ..."E outra coisa: durante anos havia um canal de televisão de serviço público que mostrava estes filmes. Quando se mostra regularmente esse cinema, está-se a criar público. O facto de a RTP 2 ter deixado de passar cinema é um descalabro para a distribuição. Era possível esse cinema existir com visibilidade porque as televisões estabeleciam parcerias com os distribuidores independentes. Nos outros países apareceram canais especializados em cinema. Em Portugal os canais privados são piores do que a TV pública".

Fiz um sublinhado a bold no que julgo ser fundamental entender, de uma vez por todas: se há alguma coisa que distingue uma (boa) programação cultural das demais é que esta tem a capacidade de CRIAR público. Em Novembro, numa entrevista concedida ao jornal Público, pela mão de Jorge Mourinha (nosso subscritor), Thierry Garrel, programador de cinema documental do canal ARTE durante 16 anos, presidente do júri no último DocLisboa, sublinha algo parecido: "Se aprendi alguma coisa na televisão, é que, quando se aposta no público, oferecendo-lhe obras novas, supostamente complexas, mas que falam essa tal língua universal, o público está lá sempre. Sempre. Não está lá instantaneamente; a televisão comercial quer sempre medir instantaneamente a presença dos espectadores em frente ao écrã, e isso não é possível. Mas precisamente através de uma programação podemos construir um público".

E depois acrescenta: "Apesar dos novos meios de comunicação e tecnologias nascidas da revolução digital - um mundo que é uma selva e que ainda não tem economia - acho que a televisão programada ainda vai viver muitos anos. Há 30 anos anunciava-se o fim da televisão com a video-cassette, há 25 anos era o cabo que a ia matar, de cinco em cinco anos aparece uma novidade tecnológico-civilizacional que me parece francamente empolada..."

Há uma filiação que é feita, que se reproduz com o passe a palavra, que se passa com os VHS - de irmãos mais velhos para mais novos, de pais para filhos... - e que, em última análise, nos fica na memória, por envolver objectos que vieram iluminar um pedaço da nossa vida. O "problema RTP2" pode bem ser o princípio de um problema maior, que os festivais maquilham mal: a falta de uma cultura de sala, crítica, activa e "programante" (no sentido de levar as pessoas a saberem programar os seus visionamentos), em Portugal.

9 comentários:

João Lameira disse...

Estou de acordo com a generalidade do que escreves e dos que citas, mas essa noção de que há demasiados festivais de cinema em Portugal deixa-me perplexo. Como é que isso pode ser uma coisa má? Se calhar, são as distribuidoras, como a Midas do Pedro Borges - que, diga-se, tem lançado os melhores filmes nos últimos tempos - que não sabem aproveitar esses públicos.

Luís Mendonça disse...

Demasiados festivais leva a uma redução dos hábitos de acompanhar o cinema. Os festivais, selecções de filmes já com uma dose de especialização, levam a uma elitização desses hábitos, a uma segmentação, se calhar, nem sempre positiva do público cinéfilo e, a meu ver, podem ser um convite a uma espécie de acomodismo acrítico desse público perante o cinema que passa nas salas, em circuíto normal.

Nos festivais, nalguns festivais..., é quase como se os filmes já chegassem como coisa seleccionada, analisada e consagrada por alguns, que se impõe (sem convite à reflexão, sem estímulos à procura, à descoberta sistemática) ao público.

DoxDoxDox disse...

Acho que o artigo do Vasco Câmara é pertinente, e fazes bem em sublinhá-lo : são preocupantes os regimes actuais de consumo e distribuição de cinema em Portugal (do cinema à televisão).
A "cultura programante" é, efectivamente a legitimação da afluência (e importância) dos festivais, que está directamente relacionada com o principal problema - o levantado pela vossa petição - a questão da programação.
A multiplicação dos festivais, orientados para temas e públicos cada vez mais específicos, e programados segundo certos vectores delimitados, são convites a um consumo ordenado - que o espectador procura - uma vez que responde à convulsão incansável própria à era, onde a explosão do digital cria massivamente ofertas diversificadas entre todos os níveis e géneros.
A frase de Paulo Borges é importante para relembrar como a partir dos meios de comunicação para massas se podem criar linhas orientadoras para procuras convenientemente seleccionadas nas salas : " E outra coisa: durante anos havia um canal de televisão de serviço público que mostrava estes filmes. Quando se mostra regularmente esse cinema, está-se a criar público."

Luís Mendonça disse...

Sim, concordo com o que dizes. Não estou a colocar-me, e penso que o Pedro Borges também não se coloca, numa posição crítica perante a existência de bons festivais de cinema em Portugal; acho que ele fala é da insularidade desses eventos no panorama mais abrangente de consumo do cinema. A coisa é muitíssimo específica num DOCLisboa, ao passo que nas salas comerciais a oferta é, nos antípodas, previsível, desinteressada, repetitiva e desordenada. O nicho dos festivais continua em regime de auto-alimentação, enquanto que o povo se alimenta de filmes-pipoca nos multiplexes despersonalizados. Antigamente havia um público-King, ao menos aí a experiência do cinema - feito hoje, acabadinho de sair - era, de facto, uma experiência aberta a todos. Falta reconstruir a ligação entre a experiência em festival - muito isolada - e a experiência sistemática do cinema em sala - hoje, demasiado degradada.

A experiência em sala não pode ser uma experiência de segunda, em contraponto com os festivais como uma experiência de primeira. Penso que caminharmos para aí é negarmos a essência do próprio cinema. Não sei se interpreto bem as palavras de Pedro Borges, mas é assim que vejo o problema.

João Lameira disse...

Luís, o público do King desapareceu ou minguou porque os filmes em cartaz pioraram substancialmente, não foi por haver muitos festivais. Também me parece que os festivais criam públicos, como antes a televisão fazia, que a distribuidoras não conseguem chamar para si. É certo que há falta de dinheiro para investir em publicidade para os filmes (também há falta de novas ideias mais baratas), mas a selecção de filmes da Atalanta/Clap não é grande coisa por estes dias e os da Midas, mais interessantes, acabam no Corte Inglês ou no Campo Pequeno, onde essa cultura de que falas é difícil de implementar.

DoxDoxDox disse...

Não poderei concordar consigo, João, quando podemos verificar que no King (e não no El Corte Ingles ou no Campo Pequeno, onde apenas pontualmente há ofertas interessantes), para além da programação da CLAP/Atalanta, há uma preocupação em dinamizar este espaço com a oferta de retrospectivas : dedicadas a uma tipologia mais específica de cinema, como houve este ano uma sobre o "novo cinema alemão"; ou retrospectivas de homenagem a um nome falecido como foi o caso, por exemplo, do ciclo Rohmer; nos meses de verão, todos os anos, há ainda um ciclo diário de reposição dos títulos exibidos pela Atalanta ao longo desse ano; há ainda um esforço por realizar algumas antestreias exclusivas lá, como "Cinzas e Sangue", onde inclusivamente compareceu a realizadora Fanny Ardant.
Não me parece, de todo, que o problema do decréscimo de público no King esteja relacionado com a oferta, mas antes com a procura, segundo os critérios que já aqui foram mencionados.

Luís Mendonça disse...

Os dois têm razão, apesar de eu não ter dito que o King está vazio por causa dos festivais. Não sei qual a origem do problema - ou melhor, acho que a origem pode bem estar na questão da RTP2 ou da forma como o cinema chega às casas deste país, pela televisão... -, mas é facto que a ATALANTA Filmes está uma sombra do que foi, com para aí menos um décimo dos filmes que distribuía há poucos anos e, em matéria de edição, parece acabada, sobretudo, face à concorrência MIDAS.

A MIDAS, neste momento, ocupa o lugar da ATALANTA. É triste, porque fica a impressão que só há espaço para uma distribuidora deste género em Portugal...

Por outro lado, também me parece certo que os públicos dos festivais, como diz o Pedro Borges, "não deixam marca na sociedade"; é um público, como digo, "preguiçoso" - não me levem a mal o termo... Sou obviamente a favor dos festivais, mas João já pensaste que, se calhar, para um programador do Indie ou DOC as salas normais podem estar a ser encaradas como concorrência, em vez de um natural e saudável complemento?

João Lameira disse...

Sabrina, eu mencionei o Corte Inglês e o Campo Pequeno porque são as salas onde se podem ver os filmes da Midas. Quanto ao King, apesar dos ciclos e retrospectivas, é difícil não notar o declínio na programação "normal" da Atalanta/Clap - lembro-me até que o Alice do Tim Burton passou lá, o que seria impensável há uns anos, e nem me refiro à qualidade do filme, é mesmo uma questão de públicos.

Luís, os festivais são concorrência enquanto estão a decorrer, nessa altura, sim, acredito que não seja boa ideia lançar um filme no circuito normal. Mas, somados, os festivais ocupam, no máximo, dois meses num ano, e criam ligações entre espectadores e certos cineastas, o que deveria ser bom para a distribuição. Por exemplo, se saísse um filme do johnnie To em sala (realizador que descobri no Indie), eu iria vê-lo, só que nunca estreou um em Portugal. A Atalanta até tinha os direitos de distribuição dos dois "Election", filmes bastante elogiados, o problema é que os lançou directamente para DVD. Assim não dá.

Luís Mendonça disse...

Sim, concordo contigo. Mas, como digo, não pode haver regimes de concorrência entre festivais (um universo de filmes e espectadores) e, um fosso a separá-los..., as salas "normais" (um universo de filmes e espectadores completamente diferente daquele).

Eu acredito que festivais, salas e televisão só têm a ganhar se não se isolarem em si mesmos, nas suas "lógicas próprias", e trabalharem numa espécie de ECONOMIA DE ESCALA em abono de uma cultura cinéfila programante.

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