segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Salaviza vencedor e a sanita que somos nós e o flush away da sheet TV


João Salaviza está duplamente de parabéns. Primeiro, porque fez de novo história e, graças a "Rafa", ganhou o Urso de Berlim para melhor curta-metragem. Segundo, porque dirigiu muito bem o seu discurso aos principais responsáveis pelo esquecimento e desprezo a que está votado o nosso cinema na sociedade portuguesa. Um panorama político - fruto da muita tacanhez de uma certa elite político-partidária que nos governa há décadas - e um panorama mediático - marcado pela muita tacanhez de uma certa elite amiga da elite político-partidária que nos governa há décadas... - que estão apodrecidos e que já mal disfarçam todas as suas inaptidões, tremenda incompetência e inacção, colada à egomania tirânica resultante da fraqueza de uma opinião pública anestesiada, entre outros, pelos senhores jornalistas que, com grande profissionalismo, ou estão entretidos a produzir não-notícias sobre o novo corte de cabelo do Cristiano Ronaldo ou lá vão papagueando - que dá menos trabalho... - os "argumentos feitos" dos excelsos opinion makers, espíritos, está claro, extremamente independentes - e ai de nós pensar o contrário.

Destaco a sugestão mordaz que Salaviza deu em entrevista ao Público, quando o prémio ainda lhe fervia o espírito e o embalava para as palavras justas (sim, acredito em "discursos a quente"):

Era preciso que as televisões, não só a RTP mas as privadas, tivessem um compromisso maior com o cinema português. Para mim é inaceitável que não passe já hoje na televisão, nos três canais, o filme do Miguel Gomes.

O que diz é arrojado - porque ainda não foi pensado bem este esquema de janelas simultâneas entre as obras em competição e as agendas das nossas salas e televisões, associação que, segundo me diz quem sabe disto, foi testada com grande sucesso em "Antichrist" no ano em que "assombrou" Cannes. É arrojado, mas não só: é crítico e põe o dedo na ferida quanto à falta de motivação, ideias e vontade que os "homens da televisão" têm revelado para oferecer/recanalizar/devolver ao seu público Cinema, e muito do Cinema português que - como relembra Salaviza, reportando-se ao também premiado e elogiadíssimo "Tabu" de Miguel Gomes - consegue encher uma sala em Berlim com 1500 pessoas. Os compromissos existem, nomeadamente, na televisão pública para que haja uma programação rica - pensante e crítica e actual - no que diz respeito ao cinema português e internacional.

Com efeito, o problema não é a ausência de compromissos - tenho de vos relembrar? A sério? Ok: Contrato de Concessão de Serviço Público, história e cultura institucional da RTP2 e abertura de pelo menos 3000 cidadãos a mais e melhor cinema em televisão -; digo, o problema não é a ausência de compromissos, mas a ausência de quem cumpra compromissos de forma escrupulosa e séria e, na falta destes, de quem chame à colação e "ponha no sítio" - com punho cerrado - aqueles que andam a brincar aos serviços públicos neste país, usando como escudo um discurso tecnocrata vazio e mal amanhado, que até tem perdido sofisticação nestes tempos em que qualquer gato pingado que se vê num lugar público se acha dono da inteligência - que não tem - do povo - que a tem, mas que estará hoje, talvez mais do que nunca, estagnada... a boiar na água...


A minha sugestão era, também de modo "condicional", dedicar esta vitória aos "rostos" da RTP2, que acham que por dizerem cinema ou teatro ou música 200 vezes por semana no seu magazine cultural estão a levar o público aos cinemas... ou o cinema... aos públicos. Um dia João César Monteiro disse: "o público português que se foda". Noutro dia parecido, Manoel de Oliveira disse que "públicos eram os urinóis". Usando rapidamente um raciocínio lógico, diríamos que o cinema já mandou - muito expressamente - os urinóis deste país se irem foder. Disseram isso uma vez, já aqueles senhores e senhoras dizem isso todos os dias - em modo, acreditem, bem mais ofensivo - quando vão matando a nossa esperança de sermos urinóis que tenham, de uma vez por todas, a capacidade ideológica de "mijar de volta"... e a quem de direito.

Sobre o modo como o cinema pode redimir o estado de "urinol passivo" (passo o pleonasmo) em que estamos mergulhados, Zizek já nos deu, em "The Pervert's Guide to the Cinema", uma boa reflexão em torno da antológica sequência de "The Conversation", passada na casa de banho, em que uma sanita - leitmotif da filosofia althusseriana de Zizek - devolve à tona litros de sangue despejados cano abaixo, depois de accionado o automoclismo.

Are we basically not staring into a toilet bowl and waiting for things to reappear out of the toilet? (...) Is the entire spectacle shown from the screen not a kind of a deceptive view trying to conceal the fact that we are basically watching shit?

Neste caso, nós é que somos a sanita. Ou melhor, digo que é tempo de deixarmos nós de ser "toilet bowls", veículos, canais de porcaria que circula pelos canos cerrados da ideologia assassina do pensamento, da arte e da cultura; cujo grande compromisso com o Estado é, de facto, tratado como merda - e, caríssimo telespe(c)tador, tratado como merda, transformado em merda acaba. Este sábado, a RTP2 repetiu pela milésima vez o filme "Feios, Porcos e Maus", seguido de "The Prince and the Showgirl" de Laurence Olivier e com Marilyn Monroe, o grotesto escatológico com o glamour da Hollywood clássica. Não, nada disso: não há discurso subversivo nenhum neste double bill, é mais um flush away na boca do espectador (que também não tem nada a ver com o "autoclismo" do Renoir, que Luís Miguel Oliveira eternizou com graça e inteligência aqui).

O autoclismo - muito auto - de a sheet tv que é a RTP2 continuará ao serviço de quem nos usa como sanita. É tempo de devolvermos a trampa; é tempo de abrirmos os olhos, para mostrar que não é que quem veja "queira ver", apenas não nos resta grandes alternativas. E depois em Abril, ouvi dizer, regressa o "5 para a Meia-Noite"... Parece que já estou a ouvir: flushhhhhhhhhhhh....

Still de "Merde" (2008) de Leos Carax

3 comentários:

Pedro Jordão disse...

Ou Duchamp, sempre actual, com "The Fountain" (http://lonelyhunter.com.sapo.pt/fountain.jpg)

Luís Mendonça disse...

Elementar! E, já agora, deixo aqui mais um still inspirador: http://4.bp.blogspot.com/_NjCRn113tFQ/Sk-HEdg96lI/AAAAAAAABfI/DbTsudlmUg8/s1600-h/phantom_of_liberty2.jpg

Luís Mendonça disse...

(Já agora, não fui inocente: em "Elogio da Intolerância", Zizek usa o magnífico exemplo dessa sequência absurda de "O Fantasma da Liberdade" para introduzir a exposição da sua "metafísica das sanitas".)

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...