quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Balanço caseiro de 2013

O CINEdrio dá prosseguimento ao tradicional balanço caseiro do ano (recordo aqui o de 2012). Filmes vistos em casa, em DVD, Blu-ray ou em antena televisiva. 2013, ano de algumas grandes descobertas. Como sempre, os destaques que se seguem não são apresentados segundo nenhuma ordem particular sem ser aquela que comanda (aleatoriamente?) a minha memória.

Jack Arnold


Todo o Jack Arnold, de "Creature From the Black Lagoon" a "Monster on the Campus", de "Man in the Shadow" a "No Name on the Bullet", do poeta da ficção científica ao documentarista do western. Destaco, aliás, o western noir protagonizado por Jeff Chandler e Orson Welles que é um tour de force de síntese cinematográfica, com uma estonteante fotografia a preto-e-branco (a tal grande "sombra" do título é atmosferizada por ela). Na ficção científica, se calhar antes dos títulos já citados, vem-me de imediato ao espírito quando penso neste ano que passou o prazer enorme que "Tarantula" e "The Incredible Shrinking Man" me deram. O primeiro é um tratado lapidar sobre o potencial visual - e poético, lá está - do série B fantástico, já o segundo eleva o conto metamórfico à reflexão metafísica sobre a nossa pequeníssima condição humana. Com estes títulos, fica à mostra que Arnold é um dos mais inventivos e, a todos os níveis, aventureiros cineastas do seu tempo.

Hollis Frampton


Um dos nomes cimeiros do structural cinema, Frampton é um artesão da linguagem, a do cinema, a da palavra escrita, a da palavra dita, a da luz, a do movimento, a da inércia. Cada possibilidade que a matéria  lhe oferece é esticada até ao limite, numa tentativa de dar a ver o seu "todo" potencial. Temos então "Zorns Lemma" como uma alfabeto de imagens ou imagens do alfabeto, um alfabeto "gerado" espontânea ou alteatoriamente "na rua"; temos em "Surface Tension" uma viagem pela cidade feita de imagens paradas, fotografias como motor do cinema e jogos de palavras que muito provavelmente inspiraram Jean-Luc Godard (que, tenho ideia, descobriu Frampton nos anos 80); temos ainda "Nostalgia" sobre um exercício de memória indexado a fotografias em chamas, um passado descoordenado que se eleva no ar como éter; temos "Lemon", uma natureza morta académica sobre luz e sombra; temos isto e muito mais na excelente caixa que a The Criterion Collection lhe dedicou, com entrevistas e um muito interessante ensaio/intervenção com voz de Michael Snow e texto de Frampton. Ver e ouvir tudo isto em Blu-ray foi um dos bons luxos que 2013 me deu.

Curtis Harrington


Descoberta absoluta que me deixou boquiaberto. Harrington, que para muitos é "apenas" um cineasta série B de "gosto duvidoso", foi nos anos 40 um dos nomes mais influentes da chamada primeira vanguarda do cinema underground americano. As suas curtas dos anos 40 estão algures entre Poe, Cocteau e Lynch, histórias sobre a efemeridade da vida - e da juventude - realizadas por um adolescente imberbe com capacidade para encontrar fronteiras novas entre o cinema avant-garde e o cinema fantástico de terror. A edição Dual Format da Flicker Alley será o motivo ideal para se conhecer ou reavaliar toda a obra deste realizador esquecido. Talvez em 2014 tenha motivos para voltar a falar dele aqui.

Ida Lupino e The Bigamist


Ida Lupino é a patrona de um punhado de filmes socialmente engajados e moralmente confrontantes que saíram da produtora fundada por si e pelo seu marido, Collier Young, The Filmmakers. Realizou alguns filmes pungentes como "Outrage" e "The Hitch-Hiker", este último um mini-clássico do film noir duro e visceral como não seria de esperar de uma "donzela". A humilhação de que é alvo uma mulher depois de ser violada por um estranho na rua - numa sequência memorável feita de pura sugestão fílmica - é o objecto de "Outrage", mas "The Bigamist", realizado e protagonizado pela própria Ida Lupino, vai mais longe. Na realidade, vai tão longe que ainda hoje nos "desconforta", pela forma como nos permite aceder, sem moralismos, às subjectividades (todas elas feridas) da mulher humilhada (a belíssima Joan Fontaine, que nos deixou este ano), da segunda mulher (é esta que Lupino interpreta, corajosamente) e... do homem (Edmond O'Brien) que opta por uma vida dupla,  sobranceiramente indiferente ao amor que a sua mulher sente por ele, mas sobretudo - e é aqui que está o ponto de desnorte - ao próprio amor que ele sente pela sua mulher. É um (melo)drama filmado com um sentido, diria, implacavelmente justo por Ida Lupino. Um acto de confronto, mas antes de tudo um acto de coragem que só pode vir de uma grande realizadora.

The Quiet Man


Foi uma assombrosa experiência. Os verdes da paisagem irlandesa, os vermelhos dos cabelos de Maureen O'Hara, a "escala" de John Wayne, o ludus das relações humanas que a câmara de Ford mascara com pathos - por baixo do melodrama, a comédia!, parece que grita, como uma mensagem de revolta. Não se atiram paralelepípedos, mas "joga-se" contra a paisagem a mais épica das rixas, num final que nos embriaga de entusiasmo e genuína diversão. Mas o resto é o mais importante: as cores, o vento, a precisão de tudo o que se coloca à frente da câmara. É dos filmes mais inebriantes de Ford e, em Blu-ray (vi a edição espanhola, tão recomendável quanto a americana, parece-me), tudo parece ganhar uma força extra.

India: Matri Bhumi


Quero muito rever este filme, porque preciso de arrumar algumas ideias em torno da hipótese de Godard e Truffaut terem estado sempre completamente certos e de, portanto, este ser "o filme" de Roberto Rossellini. Senti o mesmo gesto milagroso de se ir ao berço do Mundo, senti uma comoção intensa com a história dos elefantes e o conto elegíaco do macaquito, toda esta grandiosidade e esta pequenez "contra" uma paisagem de uma beleza esmagadora. O plano mais belo que vi este ano está aqui - e acima reproduzo, para tentar irradiar a minha crença neste milagroso filme. "India" deveria ser o Deus-Sol de todas as cinefilias. Impõe-se uma edição DVD/Blu-ray digna desse nome. (E diria o mesmo para o subvalorizado "Era notte a Roma", outro momento intenso deste meu 2013.)

Le amiche


Não sei o que é mais belo: se o rosto de Eleonora Rossi Drago, se a sua solidão deprimida, se a "confusão" amorosa que a rodeia, junto das suas "amigas". Senti este filme - e vou usar a palavra sem medo - como uma obra profundamente feminina, de uma delicadeza e elegância que só Antonioni consegue manusear. Não sei por que demorei tanto tempo a chegar a esta obra-prima, mas nunca é tarde demais para ver "as amigas".

Pursued


Podia escolher "Along the Great Divide", "Gentleman Jim", "Colorado Territory" ou "Distant Trumpets". Mas vou ser fiel à minha impressão mais profunda: "Pursued" é a obra-prima superior de Raoul Walsh. Não digo que seja a mais paradigmática - de facto, não o é - mas é um filme tão belo e, ao mesmo tempo, tão brusco que não podia fugir a ele. Aliás, foi o único filme em 2013 que vi - numa boa edição Blu-ray da Olive Films - e voltei a ver mal terminou. Não consegui processar a imensidão (psicológica, sim) deste western noir que encontra em Robert Mitchum o seu ecrã primordial mais cativante. Ninguém sai daqui indiferente. Não é um tratado "autoral", mas uma manifestação da força sedutora, da potência estética do cinema de Walsh.

Choses secrètes


O Correio da Manhã TV presenteou-nos este ano com um pequeno ciclo Brisseau, extraído directamente da caixa lançada pela Leopardo Filmes. Ficou-me na retina este seu título, que me havia escapado quando saiu no circuito comercial português. Talvez por andar a rever a obra completa de Losey, ou por ter visto há dias "La fille de nulle part", "Choses secrètes" teve um impacto enorme em mim. A sua construção sobre a ascensão e queda de duas femmes fatales na íngreme escadaria social, o seu exercício de exorcismo e terror sobre o desejo e o corpo pareciam-me vir de "The Servant" ou, em boa medida, emparelhar com a odisseia subterrânea de "Eyes Wide Shut". Foi um momento alto que passou, como um fantasma, nos ecrãs de muitos portugueses. O pequeno ecrã engrandeceu-se.

O noir do ano


Escolhi "The Prowler" de Joseph Losey. Pensei em "The Lineup" de Don Siegel (mas o seu efeito-choque não perdura tanto) ou em "Raw Deal" de Anthony Mann (mas este vi na Cinemateca, pelo que não ficaria bem num balanço desta natureza tão… doméstica). O filme de Losey é, nas palavras de James Ellroy, o paradigma do "perv noir". Uma história de voyeurismo que se transforma numa intrincada teia de decepção e medo. Medo não da habitual femme fatale, mas do mais cínico homme fatal que se poderia arranjar: Van Heflin num papel estarrecedor, ao lado da não menos brilhante Evelyn Keyes. Este filme nunca vai pelo caminho mais fácil, há qualquer coisa nele que se resume bem na desesperante imagem final da personagem de Heflin: uma inglória e humilhante subida em declive, uma condenação próxima de Sísifo que lembra quão "ilusórias" são as subidas ou as descidas (sociais) no cinema de Losey. Experimente derrapar aqui.

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