sábado, 28 de dezembro de 2013

Prémios CINEdrio 2013

Melhor filme: "La vie d'Adèle - chapitre 1 & 2". Sem sair do essencial de uma história de amor, Kechiche produz uma das mais belas e emocionalmente intensas imersões na existência de uma personagem, que de tão viva e autêntica que é chega, de facto, a confundir-se com a vida. O ecrã dessa viagem não é o plano mas o rosto de Adèle, é ele que "reflecte" o universo de todos os sentimentos humanos: amor, rejeição, ciúme, dúvida, angústia… fome e desejo. O resultado é de uma simplicidade de tal modo desarmante que já muitos se precipitaram em qualificar esta "Vida" de "vazia" ou até - a meu ver, incompreensivelmente, porque não há filme mais honesto com a dimensão humana, eminentemente singular e universal, da sua personagem - "exploratória". Mas não há ratoeiras nenhumas aqui: o filme só nos dá um rosto pleno, sujeito a todas as intempéries interiores. É simples, complexo, claro e denso. Tudo isto ao mesmo tempo. Não há que ter medo de um cinema que provoca emoções contraditórias, nem se deve confundir isto - a vida, enfim - com "manipulação", a palavra mais ligeiramente atribuída a esta obra-prima da autoria de Kechiche ou, antes dele, da autoria da actriz mais bela do ano: Adèle Exarchopoulos.

Melhor realização: James Wan ("Insidious - Chapter 2"). Gosto de realizadores de câmara e eles escasseiam com a dimensão experimental e concreta deste James Wan. No cinema americano, num ano sem Fincher e sem Michael Mann, Wan ocupa o lugar de destaque no lote de cineastas que pensam um filme em movimentos de câmara, em coreografias do corpo; enfim, que pensam o cinema espacialmente.  Em "Insidious - Chapter 2" e "The Conjuring", Wan filma os mesmos objectos, as mesmas situações dramáticas, mas sempre de modo - é uma questão de modo o que aqui trato - refrescante. As suas "partidas de criança", as aparições in situ - anti-CGI -, a bonecada, o jogo de hide and seek entre as "quatro paredes" da casa, tudo o que a câmara de Wan produz - o seu efeito horrífico - está na maneira como ela se move no espaço. O grande efeito especial do seu cinema é, precisamente, o seu apurado sentido de mise en scène. 

Melhor plano: logo a seguir ao incandescente lettering de "Insidious - Chapter 2", um travelling para a frente faz-nos percorrer o abismo até à nossa personagem, num quarto escuro usado para o interrogatório policial que nos relança na história da família do primeiro "Insidious". Não há medo de dizer que, num ano sem Tarr, este foi o mais engenhoso dos planos vistos em cinema. Um plano que não só nos faz "vir do abismo" como, mais inteligentemente, nos faz "percorrer o abismo" até chegarmos a este radicalíssimo "Chapter 2". Queria destacar ainda outro travelling de outro primitivo: o último plano, magistralmente encenado (digno de Cocteau), de "La fille de nulle part". É também abissal, mas o abismo tem aqui tons de dourado. O travelling como questão de moral ou o travelling como questão de mortal, frágil como o mundo?

Melhor actor: aqui escolho dois. Primeiro, Matthew McConaughey. Segundo, Matthew McConaughey. O detective-assasssino e assassino-detective Joe, de Friedkin, e o pirata dos nossos dias Mud, de Nichols. Dois mundos opostos gerados no e pelo mesmo actor.

Melhor actriz: aqui escolho duas. Primeira, Adèle Exarchopoulos. Segunda, Adèle Exarchopoulos. As duas estão em "La vie d'Adèle": a Adèle-actriz, a Adèle-personagem, as duas estão tão unidas quanto nós a elas. Fusão de peles, de "eus", de vidas. Experiência total graças a uma grande actriz com, então, 18 anos.

A revelação: Ti West ("The Innkeepers"). Howard Hawks dizia que o seu segredo estava em "filmar comédia como se fosse drama e drama como se fosse comédia". Já o escrevi: West "filma horror como se fosse comédia e comédia como se fosse horror" neste pequeno grande filme sobre dois frescos espécimes da geração precária "detidos" num hotel centenário que, azar o deles, está assombrado por espíritos inquietos. Ti West dá, a meu ver, um passo em frente em relação a "The House of the Devil" quando inscreve o burlesco, o "desajeitamento", de Sara Paxton (outra das actrizes do ano) numa história de "casa maldita" 100% convencional. O terror é palco de experimentalismo áudio/visual (muito literalmente) neste filme sempre a jogar subtilmente "entre divisões". É o paradigma de como o mais experimental pode ser, ao mesmo tempo, o mais clássico. Hawksiano, neste caso. (Isto é, também carpenteriano.)

A desilusão: "Django Unchained". Tarantino voltou ao exercício de copy pasting cinefilamente hipercalórico, uma espécie de banquete tão sumptuoso quanto enjoativo, onde o cozinheiro se esqueceu do sal. Uma desarmoniosa amalgama de referências que deleitará quem vê o cinema com uma lupa à procura dos links para o lado B da história do cinema. Na realidade, tanto quanto no sobrevalorizado "Kill Bill", Tarantino põe tudo de tal modo à vista que já nem a lupa será necessária. O que lhe interessa é a mais apolítica citação pela citação, não o exercício de degustação, de reciclagem ou transformação da matéria fílmica em confronto com uma certa realidade dramática. Estamos, por isso, longe de "Death Proof" ou "Inglourious Basterds", os seus dois melhores filmes do século XXI. O primeiro inscrevia o slasher na "escrita" lubitschiana de Tarantino, o segundo punha a matéria fílmica em confronto com uma recriação, ou melhor, com um recreação histórica. Em "Django Unchained" a saturação citacional é tal que não descortinamos exercício algum de inscrição ou assimilação de ou confronto com… Tudo é jogado ao (jogado ao, não com o) espectador como uma sucessão de piscares de olho pós-modernos que nos assediam em vez de seduzir. Aguardamos por melhores filmes vindos da forja tarantinesca.

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