Publico aqui a primeira parte do texto "A Essência de um Olhar", que pode ser lida na Red Carpet deste mês. A segunda parte será publicada na próxima edição da revista e antes disso aqui no CINEdrio.[Notas prévias: o texto que se segue é uma versão adaptada de um trabalho elaborado no âmbito do mestrado de "Cinema e Televisão" da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; iremos apresentar esta análise a "Angel Face" em duas partes, sendo que a segunda será publicada na próxima edição da Red Carpet; a bibliografia do trabalho é muito extensa, por isso, são identificadas nesta versão apenas as fontes das citações directas e das ideias retiradas de obras/artigos essenciais sobre o filme; é da responsabilidade do autor a tradução (de inglês para português) de todas as citações realizadas.]
Otto Preminger acreditava que o realizador deveria controlar todas as etapas da criação de um filme, da pré-produção à sua distribuição nas salas, passando mesmo pela realização dos trailers e conceptualização dos cartazes (Pratley, 1971). Não espanta, por isso, que tivesse entrado, várias vezes, em ruptura com Darryl Zanuck, o seu patrão na 20th Century Fox. E que, ao mesmo tempo, fosse descrito pelos actores com quem trabalhou como um "tirano no set". O facto de ter interpretado, enquanto actor, papéis de nazis nalguns filmes do período clássico não ajudou a limpar essa imagem, que, importa dizer, nos parece algo injusta. Preminger passou parte da sua vida a pugnar pela autonomia do realizador em relação à política dos estúdios. Por mérito próprio, conseguiu, mesmo sob a alçada da 20th Century Fox, produzir e realizar a maioria dos filmes que fez a partir de "Laura" (1944) – considerado, por si, o seu primeiro filme... Em 1953, assinou a sua primeira produção independente: o polémico "The Moons is Blue".
Mas, um ano antes, houve "Angel Face", objecto que ocupa um lugar muito particular na filmografia do realizador. Nas palavras de Preminger, tratou-se de "uma curiosa casualidade". Desde logo, porque a produção ficou a cargo de Howard Hughes; isto é, fora do domínio de Zanuck. Por sugestão daquele, Preminger foi "emprestado" à RKO para rentabilizar os últimos dias de contrato com a actriz britânica Jean Simmons. Hughes deu total liberdade a Preminger para produzir e realizar, no espaço de 18 dias, um filme baseado (remotamente ou não) no argumento "Murder Story".
A razão para tal escolha está, a nosso ver, à vista naquilo que acabou por ser "Angel Face": um filme compacto, que evidencia um método, ou melhor, uma disciplina rigorosa no acto de filmar. Howard Hughes sabia que Preminger era dos poucos cineastas em Hollywood que não se assustava com um calendário de filmagens tão apertado e, para mais, um orçamento mais limitado que o costume.
Jacques Rivette considera que, despido dos recursos tecnológicos da 20th Century Fox e tendo em mãos um argumento "pouco convincente", "Preminger reduziu a sua arte ao essencial", isto é, fez de "Angel Face" o derradeiro teste aos limites do seu cinema, que, pela primeira vez, foram postos a nu na tela. Na crítica que escreveu para os Cahiers du Cinéma, intitulada "O Essencial", Rivette explica que, ao contrário de realizadores como Hitchcock ou Hawks, o que faz de Preminger um autor não é tanto a reincidência de certos temas na sua filmografia, mas, acima de tudo, a "maneira" como os filma. Andrew Sarris (1971) aproximou-se desta "ideia de cinema", afirmando que "É a maneira de Preminger, mais do que a matéria, que nos deve preocupar mais".
A nudez de "Angel Face" não abala o mundo do realizador austríaco; pelo contrário, põe em evidência, num processo de destilação formal, a ideia de que o grande tema do seu cinema (matéria) é a própria mise en scène (maneira). E o que é a mise en scène? Pensamos que em "Angel Face" esta é, de facto, a "arte da relação: da câmara com os actores e destes com o espaço, mas também dos actores entre si" (Grilo, 1997). Toda uma arquitectura de relações que a "maneira" premingeriana eleva a um estado de depuração máxima. Mas como é que Otto Preminger a fabrica?
Desde logo, através de uma muito (auto-)elogiada capacidade de trabalho, ancorada numa visão pragmática do cinema. Com efeito, a segurança com que Preminger afirma a eficácia da sua planificação é, no mínimo, desarmante: "Eu comecei a minha carreira no teatro e, por isso, vejo a produção final na minha cabeça antes mesmo de começar a filmar" (Phillips, 1979). O próprio complementa esta ideia noutra entrevista que dá à revista Films and Filming (Preminger, 1959): "Eu nunca filmo mais do que é absolutamente necessário". Podemos encontrar indícios desta visão ultra-planificada e quase ecológica da mise en scène no início das 4 cenas em que Diane entra no quarto de Frank: filmadas sempre do mesmo ângulo, num plano geral que mostra à direita a porta por onde Diane invariavelmente surge. É uma solução simples, seguramente económica, que ajuda a perpetuar a ideia de regresso em "Angel Face".
Ao contrário de outros realizadores (como Wyler e Zinneman) que filmavam uma cena em vários ângulos para depois escolher o melhor de todos na sala de montagem, Preminger partia para um filme na certeza de que a única perspectiva que nele iria vigorar seria, precisamente, a "sua perspectiva". E, nesse sentido, apetece brincar com as palavras de Robert Bresson, em "Notas Sobre o Cinematógrafo", e dizer que em "Angel Face" os actores e as suas personagens sabem que "a câmara é o olho, ou antes, o olhar do realizador" – e é só através dele que nós, público, vemos o filme. Mas qual a natureza desse olhar aqui?
Já se escreveu que é dura e directa, neutral ou objectiva, transparente, lúcida e verdadeira. Preferíamos neste aspecto sermos um pouco como o próprio Preminger e ousarmos uma interpretação mais "terra-a-terra": se a singular "visão do todo", que citámos atrás, é fruto da sua experiência, enquanto actor e encenador, no teatro vienense, pensamos que a justeza do seu olhar – leia-se, da sua câmara – se poderá dever muito à relação profunda que tinha com o pai, um prestigiado advogado austríaco. Um dia, este pediu a Preminger que concluísse um tipo de estudo mais formal, antes de seguir o sonho de se tornar actor de teatro. O pedido foi aceite e Preminger escolheu formar-se em Direito.
Assim sendo, talvez seja da memória do seu pai que nasceu em Preminger o fascínio pelos tribunais e uma certa abordagem judicialista da própria mise en scène, bem presente em "Angel Face" e exemplar em "Anatomy of a Murder" (1959). De facto, é central no seu cinema uma preocupação em "ouvir as partes" e não tomar partido, ou juízos precipitados, em face do que a câmara testemunha. Em entrevista, Preminger diz: "O meu conceito básico de drama é mostrar os dois lados de qualquer questão e não apenas o ponto de vista do realizador" (Phillips, 1979).
Em "Angel Face", o protagonismo parece repartido, de forma quase equitativa, entre Frank e Diane, tal como entre Catherine e Charles e, a espaços, entre Mary e Bill. É curioso ver como a câmara joga o jogo das personagens, num filme essencialmente "conflitual", sobre o controlo e a submissão e a submissão e o controlo. Sobre sexo (Mitchum, o homem-objecto) e dinheiro (aquilo que Simmons usa para o comprar). Um exemplo desse gesto subtil e perverso – porque aquele jogo também envolve inadvertidamente o espectador – é o da sequência inicial, em que Frank e Diane se encontram pela primeira vez.
Numa análise exaustiva que fez do filme, Richard Lippe (1996) nota que as cenas iniciais de "Angel Face" (a ambulância leva Frank e Bill à mansão Tremayne) estão centradas na "experiência de Frank"; logo, sugerem que este será a principal "fonte de identificação" do espectador no filme (até porque o nome de Mitchum surge em primeiro lugar no genérico). Isto teria acontecido num film noir convencional, mas Preminger, que detestava toda e qualquer etiqueta, faz questão de dificultar a tarefa ao espectador.
Num único plano, vemos Frank a descer as escadas e a ser atraído, como um íman, pela música que alguém toca ao piano (praticamente o único tema musical de todo o filme, composto por Dimitri Tiomkin). À medida que Frank se desloca na direcção da música, a câmara acompanha-o numa ligeira panorâmica à esquerda, até incluir, no mesmo frame, a imagem de Diane: para Lippe, "O que é importante aqui é que Preminger não corta para Diane, o que teria sugerido um plano subjectivo da perspectiva de Frank; ao invés, ao construir um plano americano através de um movimento de câmara para apresentar Diane, ele desencoraja não só a objectivação desta como a identificação do espectador com Frank". No plano seguinte, já não é Frank que vai ao encontro de Diane, mas Diane que espera a chegada de Frank. Por instantes, num jogo perspéctico produzido pela câmara-olho de Preminger, os papéis invertem-se: nessa sequência, Frank perde o controlo do filme para Diane e só pontualmente é que voltará a ganhá-lo.
Por outro lado, é na sequência do julgamento que a dimensão objectiva, ou multiperspéctica, da sua mise en scène melhor se cruza com a ambiguidade moral das personagens (culpadas ou inocentes, boas ou más ou tudo isso ao mesmo tempo). Trata-se de um exemplo notável daquilo que Paul Mayersberg (1979) denominou de "Preminger's detachment". Foquemo-nos na sequência das alegações finais, que é filmada, tanto para o advogado de defesa como para o de acusação, com a câmara no mesmo ângulo: salvo os inserts com os casais Frank e Diane e Bill e Mary, os dois advogados são enquadrados pelos mesmo plano médio, que se move subtilmente à medida que os seus corpos se aproximam (enfaticamente) da câmara. Preminger trata os dois com a mesma dignidade e, como já mencionamos anteriormente, procura ser equilibrado na auscultação das partes envolvidas.
Bibliografia (I):
GRILO, João Mário, A Ordem no Cinema: vozes e palavras de ordem no estabelecimento do cinema em Hollywood, Lisboa, Relógio D’Água, 1997, pp. 289-345;
LIPPE, Richard, «At the Margins of Film Noir: Preminger’s Angel Face», in SILVER e URSINI (ed.), Nova Iorque, Limielight Editions, pp.161-175;
MAYERSBERG, Paul, «From Laura to Angel Face», Movie, Set. de 1979, pp. 14-16;
PHILLIPS, Gene D., «Both Sides of the Question: Otto Preminger», Focus on Film, 1979, pp.22-26;
PRATLEY, Gerald, Otto Preminger, «Colección Directores de Cine», Madrid, Ediciones JC, 1971;
PREMINGER, Otto, «Your Taste, My Taste… and The Censors», Films and Filming, Nov. de 1959, pp. 7 e 31;
SARRIS, Andrew et al., «Otto Preminger» in SARRIS (ed.), Hollywood Voices: Interviews with Film Directors, Londres, Secker & Warbur, 1971, pp. 69-84.