3. Videodrome ou Quando o Olhado Rouba o Olhar (II)
Tal como em They Live, Videodrome denuncia um fenómeno de instrumentalização dos órgãos de comunicação social, neste caso concreto, da televisão, que, à mercê dos interesses torpes e insidiosos de autênticos “demiurgos do Mal” (António, s.d.: 67), constituem poderosíssimas armas de controlo social. Max Renn é contaminado pelo “vírus da imagem” (António, s.d.: 68), que o subjuga a um intrincado processo metamórfico, que é, no fundo, essa transferência de sinal, entre Videodrome e a sua carne vulnerável: “o abdómen de Max oferece um local escancarado e vaginal, no qual Barry Convex introduz uma cassete vídeo que programa este verdadeiro magnetoscópio humano (…) (António, s.d.: 68). “Max tornou-se numa imensa porosidade pela qual o vírus-imagem o penetrou” (S. Grunberg, 2006: 45).
Como aponta Shaviro, “The more images are flattened out and distanced from reality, the more they inscribed in our nerves and flesh across our synapses… We have entered a new regime of the image: one in which vision is visceral and intensive instead of representational and extensive" (S. Kaufman, 1998: 128-129). (...) Cronenberg leva esta última ideia à letra: o corpo mutante do protagonista como que se ajusta à “imagem” de Videodrome. A violência das imagens transferiu-se para os actos de Max, transformando-o numa autêntica “máquina de guerra”, dotada além disso de uma “mão-pistola fálica, amálgama de carne e metal” (António, s.d.: 68).
A ideia de que a violência das imagens é reproduzível em quem as vê teve uma expressão acentuada nos anos 80, período em que vários legisladores (nomeadamente, nos EUA e Grã Bretanha) se tornaram ainda mais “literais” que o próprio Cronenberg, devido à sua presunção rasteira de que, de facto, a imagem mata: vários foram os projectos-leis aprovados com vista a proteger as crianças da imagética perigosa e alienante da pornografia (S. Kaufman, 1998: 134).
Mas, de facto, esta discussão é bem mais profunda que isso, como bem elucida um estudo de Marcel Frydman que “mostra, o que reforça a tese da dessensibilização, que quanto mais uma criança sofre a violência das imagens da televisão, mais o efeito violento das imagens e os riscos de passagem ao acto (se exceptuarmos as crianças já inclinadas para a agressividade) tendem a enfraquecer progressivamente” (Mongin, 1997: 171).
O próprio tratamento Ludovico em Clockwork Orange (1971) de Stanley Kubrick vem enfatizar esta ideia: passado num cenário futurista (as indumentárias, bem como a mobília das casas sugerem-nos isso), Clockwork Orange narra a história de Alex Delarge e o seu bando, que têm como principal interesse a chamada ultra-violence, aplicando-a indiscriminadamente sobre mendigos e mulheres indefesas. O ciclo de violência que contamina toda a primeira parte do filme é temporariamente interrompido no momento em que Alex Delarge é detido e condenado, para vir depois a integrar, voluntariamente, um tratamento governamental que procura extirpar a sua propensão violenta.
O tratamento Ludovico consiste em expor o criminoso a um conjunto de imagens violentas, com as quais o sociopata spect-acteur tem uma espécie de relação afectiva ou, pelo menos, projectiva, com vista a, mediante o choque, eliminar qualquer tendência agressiva.
Alex Delarge sob "tratamento"
Na cena final do filme, Kubrick sublinha o fracasso de tal experiência, pois, como aponta Mongin, “é preciso entender não só que os indivíduos não são assassinos biológicos a quem se pode extirpar o vírus ou a tara original, mas também que a vontade de acabar com a violência – a da ordem moral e repressiva – é uma maneira de a redobrar, de a intensificar. A luta contra a violência é ela própria uma violência que não permite de forma alguma que se acabe com a violência: este círculo vicioso é bem conhecido” (1997: 147). Ainda assim, o tratamento Ludovico, baseando-se em imagens violentas, procura sustentar a teoria da dessensibilização levada ao extremo: não só nega o efeito amplificador da imagem violenta nos níveis de agressividade do espectador, como associa à imagem uma espécie de qualidade terapêutica.
As primeiras reacções a Clockwork Orange parecem dar o benefício da dúvida aos defensores da relação mecanicista entre a imagem violenta e a eclosão de um clima social violento: o filme de Stanley Kubrick provocou, aquando do seu lançamento, actos de violência que levaram as autoridades britânicas a censurá-lo (Mongin, 1997: 12).
Hoje, mais do que nunca, é quase impossível avaliar com total segurança que tipo de influência as imagens violentas exercem sobre os seus espectadores. É um facto que a violência se tornou parte do quotidiano, algo que nos é continuamente irrigado pelos media – todo o espaço público é hoje um autêntico santuário da imagem: estática ou em movimento, em gigantes outdoors ou em pequenas molduras, posicionadas ao nível dos olhos, sobre os urinóis das casas de banho públicas… A violência não vem só da pornografia ou dos videojogos; acima de tudo, esta acontece, hoje, nas sociedades Ocidentais, como resultado do sobredoseamento de imagens, desde publicidade aos telejornais, que cercam e agridem os olhos, incessantemente.
“Sem dúvida que a humanidade já conheceu épocas mais sangrentas, mas nenhuma com tantas imagens violentas como a nossa. Estamos submersos numa violência sem precedentes (…). Este sistema [de marketing planetário] inibe a diversidade dos pontos de vista acerca do que é um conflito, asfixia a produção televisiva independente e priva os espectadores de escolhas mais atractivas. Transforma uns em vítimas e dá a outros uma excessiva segurança. Aumenta a ansiedade geral e suscita atitudes repressivas por parte de políticos que exploram o sentimento de insegurança generalizada que provoca” (Gerbner) (Nel, 2004: 82).
Assim, quanto aos perigos da imagem violenta, as perspectivas multiplicam-se: a exposição a este “sistema de marketing planetário” torna-nos violentos (como os espectadores de Clockwork Orange em 1971); pouco nos afecta (tese da dessensibilização) ou, muito pelo contrário, cura-nos (tratamento Ludovico)?
Cronenberg, apesar de não ser inequívoco, sugere-nos que Max foi levado a cometer actos de violência, gratuitos e desconexos, como resultado de uma exposição excessiva à imagem violenta – “a imagem é vírus” (António, s.d.: 68). A certa altura, é inegável que Max se transformou num assassino servil e desumano.
Livre da acção de Videodrome, Max Renn aceitou a ideia segundo a qual o mundo e as suas imagens formam um tecido de mentiras (Mongin, 1997: 20) e que a verdadeira libertação se faz numa dimensão quase metafísica, seja na “reencarnação” numa “Nova Carne”, em Videodrome; na viagem interior de Simone Mareuil, em Un chien andalou; ou, num prisma menos pessimista e metafísico, na reacção anti-sistémica de Nada, em They Live.
O suicídio será, para Max Renn, o princípio dessa nova surrealidade, porque “Como os olhos só vêem falsidades e simulacros, o corpo imobiliza-se. A viagem interior que se salda pela morte” (Mongin, 1997: 216).
Quantas vezes fomos Max Renn?
Long live the New Flash!
Bibliografia citada:
- ANTÓNIO, Lauro, «Videodrome», in Cinema e Comunicação Social, Festival Internacional do Cinema de Portalegre, s.d., pp. 67-68;
- GRUNBERG, Serge, «alucinação ou o paradoxo do cinema», in David Cronenberg: a expressão nua, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 2006, pp. 36-47;
- HANDLING, Piers, «A Evolução do Homem Enquanto Animal Tecnológico: Videodrome», in David Cronenberg: a expressão nua, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 2006, pp. 33-35;
- MONGIN, Olivier, A Violência das Imagens, Editorial Bizâncio, 1997.
2 comentários:
"Videodrome" será talvez infelizmente um dos filmes mais desconhecidos de David Cronenberg, e possivelmente um dos melhores, com um James Woods sempre excelete e a Debbie Harry a surpreender.
cumprimentos cinéfilos
Rui Luis Lima
Parabéns pelo excelente texto. Também já falei do filme no meu blogue.
Saudações cinéfilas.
Enviar um comentário