sábado, 19 de maio de 2012

Por uma contra-crítica

Still de "Kapò" (1960) de Gillo Pontecorvo

Admito que já tinha tirado a ideia deste post de um texto do Rancière ("O Espectador Emancipado"), mas leio agora outra obra sua, "O Mestre Ignorante", e apanho exactamente aquilo em que acredito, nomeadamente, no âmbito da crítica de cinema. "A inteligência não é potência de compreensão, que se encarregaria ela própria de comparar o seu saber em relação aos seus objectos. A inteligência é potência de se fazer compreender, que passa pela verificação do outro".

Penso que este é o papel essencial da crítica: não o de nos dizer o que devemos ou não ver, o que ela compreende ou não no embate com a obra, o que ela considera boa ou má obra, mas o de nos iluminar a capacidade que temos de nos fazermos compreender, isto é, iluminar a capacidade que temos de articular as formas da nossa incompreensão.  É que nunca se compreende o cinema, ele é sempre indiscutivelmente incompreensível - João Salaviza transmitia um pouco isto recentemente, em entrevista muito interessante que deu no programa Bairro Alto. Por tudo isto é que é perfeitamente possível haver uma instrutiva conversa de cinema sobre um filme que não gostámos ou, no limite, que nem vimos... (Daney fez isso em "Travelling de Kapo", numa espécie de diálogo com um texto de Rivette.) E daqui até à ideia de que todos os filmes são bons, ou inocentes, como diz Mekas; de que todo o cinema está em todos os filmes, "tudo em tudo", como diz Rancière, vai necessariamente um passo.

Mas esse passo pouca crítica o tem querido dar, não por ignorância, mas talvez, bem pelo contrário, por excesso de "mestria", tique de uma função tornada métier que dita coisas definitivas (os "thumbs up" ou os "thumbs down" ou as manifestações de "políticas de gosto" elitistas*) mas que produz pouca ou nenhuma fantasia verdadeiramente livre (já ninguém viaja, linhas atrás de linhas, por planos imaginados, na sala escura, que estavam, ou não, no filme... lembram-se dos "acrescentos" deliciosos nas folhas de Bénard da Costa? Dir-se-iam plenos desta ignorância fértil, magistral, mas não "mestra", que falta a demasiados críticos e que é desprezada por muita gente que faz cinema).

De qualquer modo, não é coisa pouca esta função da, perdão, esta função que é a crítica de cinema: nas suas mãos parece estar "o mote" para a emancipação do pensamento fílmico, na presença ou na ausência do objecto: os filmes, que, vistos ou não vistos, bem vistos ou mal vistos, são sempre os primeiros a ganhar com tudo isto.

* - Lamento desiludi-lo, mas não precisa de Godard para pensar o cinema. Não precisa de Godard tanto quanto não precisa de Michael Bay... Um pode-me ajudar a pensar mais do que outro, mas o que interessa é a minha vontade de o ver, ou melhor, o exercício de liberdade intrínseco à escolha de o ver. Pergunto: será que nesse exercício poderei, como que por acidente, des-cobrir os "ensinamentos" de um num filme de outro? Caro crítico e, já agora, caro académico, tente responder seriamente a esta questão.

3 comentários:

Sam disse...

Excelente reflexão! Concordo inteiramente no que se refere à "minha vontade de o ver, ou melhor, o exercício de liberdade intrínseco à escolha de o ver".

Aproveito para me confessar adepto do que Jacques Rancière e Jonas Mekas afirmam: acredito que o Cinema está em todos os filmes, sejam eles mais exigentes, desafiadores e originais ou não...

Cumps cinéfilos.

ArmPauloFerreira disse...

Gostei bastante desse texto e da reflexão.
Sinto sintonia tremenda sobre o que está escrito, pois o cinema não é somente válido pelo que a suposta critica mais inteligente aponta, ou o hype do estatuto nos a ver como sendo o que devemos ver.
Eu tento seguir aquilo que me interessa ver.

No fundo, (usando uma definição que disse já a alguém), que o mais importante seja verdadeiramente sentirmos pura empatia e apreço pela transmissão de valores que pessoalmente esse filme nos possa atingir. Seja o filme americano, europeu, asiático, nacional, produto de entretenimento ou de autor, com estatuto ou não, etc... o que importa é gostarmos de fazermos desse filme de muitos, um nosso filme.

Acrescentaria que o mais importante nos dias de hoje é sermos capaz de ser receptivos a diferentes tipos de propostas e origens, e disfrutarmos do que passa à nossa frente. Se a obra nos fizer pensar e engrandecer a nossa humanidade... melhor. Se não nos agradar... mal não fará o simples acto de o ver.

Luís Mendonça disse...

As vossas respostas revelam que fui bem sucedido a transmitir o meu ponto de vista, um ponto de vista quase epistemológico sobre o papel da crítica de cinema, contudo, sempre um ponto de vista meu, que, agora, verifico ser também vosso. Fico contente!

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