segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Balanço caseiro do ano de cinema

Começo o balanço de um ano de cinema com as minhas grandes descobertas caseiras. Esta é uma elencagem puramente pessoal, do que melhor se viu aqui por casa, entenda-se.

Safdie

No top do ano este nome estará lá, bem destacado. No balanço caseiro, tenho de destacar o meu primeiro "Safdie film": a média-metragem "The Pleasure of Being Robbed". Fabuloso "filme de rua" sem rumo certo, que se faz de saídas dentro de saídas, como que levado pela vertigem dos nossos tempos - mas a ideia de tempo aqui é alvo de brincadeira "irresponsável", como se também o tempo fosse uma, ou fosse "a principal", produção nostálgica dos irmãos Safdie.

Budd Boetticher

Quatro filmes que passaram no canal Hollywood e que tive oportunidade de ver este ano, sempre com fome de ver mais logo a seguir... "Buchanan Rides Alone" e "Ride Lonesome" parecem-me ser verdadeiros emblemas do melhor western dos anos 50: uso deslumbrante do scope, cores techcnicolor de nos fazerem rebentar o coração de nostalgia e encanto e temas de amargura e, precisamente, de avassalador desencanto. É o belo crepúsculo num género nobre, em si mesmo, tremendamente, ou, diria, fordianamente, crepuscular.

Musicais de Lubitsch

"The Love Parade" e "Monte Carlo", da caixa da Eclipse dedicada aos musicais do génio alemão. Estes são provavelmente os filmes mais arrojados que vi este ano. A música é diegética, prolongamento divertido e erótico dos diálogos que celebrizaram Lubitsch - e Hawks e Wilder e Sturges - na grande arte da screwball comedy. A dinâmica homem-mulher aparece pontuada com afiado sentido de humor, numa época em que os códigos de censura em Hollywood ainda não se haviam implantado. Liberdade e ousadia - coisas inestimáveis dentro do estilo clássico.

Eastwood

Dois filmes, fora dos mais recentes do "último dos clássicos", reciclaram o meu fascínio por Eastwood depois das desilusões que foram "Changeling", "Gran Torino" e "Invictus" - e antes da que mais que se adivinha que será "The Hereafter". Esses filmes foram "Escape From Alcatraz" (mostrado no canal Hollywood), realizado pelo primeiro mestre de Eastwood, o grande Don Siegel (realizador que vem do classicismo mais "seco" de Hollywood e que, nos anos 60 e 70, desagua na perfeição no rough style dos movie brats); e a obra-prima "Bronco Billy" (exibido no canal FOXNext), comédia realizada por Eastwood em 1980 e que tem tudo lá dentro: nostalgia por um passado que não volta mais e uma doce evocação, comovente mesmo, da infância-de-Hollywood-que-é-a-de-Billy. Todo o western reduzido ao acto performativo de um grupo de circo falido. Nada mais crepuscular. Também... (Eastwood é confesso fã de Boetticher...)

Lloyd por Lloyd e Lloyd por Sturges

"The Sin of Harold Diddlebock", editado recentemente pela BACH Films, em complemento do obrigatório "The Freshman", clássico slapstick do génio cómico Harold Lloyd, constituíram o double bill mais perfeito que fiz aqui por casa. O primeiro pega no final deste último e "alonga-o" em todo um "novo filme", celebração wacky q.b. de toda uma carreira que, com o sonoro, se eclipsou... até aos dias de hoje.

A pirâmide humana de Rouch

Obrigado )intermedio( por me teres dado a descobrir cineasta tão moderno. Para quem ainda se deslumbra, hoje, com as fronteiras ténues que separam documentário e filme de ficção, ora experimentem espreitar qualquer um dos documentários que Jean Rouch realizou nos anos 50 e 60, por toda a África francófona e anglófona, sobre a experiência (muitas vezes traumática) da desconolização, sobre o racismo do homem branco versus o racismo do homem negro, sobre as relações entre tradição e modernidade, entre "campo" e cidade, entre mulher e homem, jovem e velho... Está tudo aqui, devidamente "dirigido" por um realizador que se "imerge para fazer emergir" a realidade. "La pyramide humaine" (1961) é tudo isto e mais: uma espécie de "Tabu" da Nouvelle Vague francesa, filmado na Costa do Marfim, com estudantes brancos (franceses) e negros (costa-marfinenses), sobre, precisamente, a interacção entre brancos e negros num país (de)formado por eles (por ela). Este filme tem o lirismo trágico do filme de Murnau, a doce "itinerância" de um Rohmer ou Godard e o calor - melhor, A ENERGIA - do continente africano. Belo e intenso. Vérité ou não.

"Trilogia da Guerra" de Rossellini

Dificilmente alguém me convencerá que houve edição em DVD mais relevante este ano. Falo da "Trilogia da Guerra" de Rossellini, editada pela Criterion Collection com o rigor e "amor à arte" que lhe reconhecemos por inteiro. Redescobrir o grande cinema saído da experiência inominável da guerra é rever "Roma, Cidade Aberta", "Paisà" e "Alemanha, Ano Zero" (na sua versão original, isto é, em alemão) em excelentes cópias. Para quem conhece as outras cópias que havia no mercado - "Paisà" já nem se encontrava... - perceberá facilmente a dimensão desta renovação, que, para mim, foi uma revolução para os olhos!

The Red Badge of Courage

"The Red Badge of Courage" (mostrado numa das sessões duplas da RTP2) é, de longe, o melhor filme sobre a guerra civil norte-americana que vi. Mas vou mais longe: o mais honesto, brutal e belo retrato psicológico sobre o homem (ou o rapaz que se torna homem) no campo de batalha. Facilmente rivaliza com outros grandes retratos do indíviduo em face do horror inumano da guerra, como o velhinho "The Big Parade" e os recentes "Letters From Iwo Jima", "A Barreira Invisível" ou "Full Metal Jacket". Se dúvidas houvesse - no meu caso, nunca houve - está aqui provado o génio inesgotável de Huston.

Memories of Murder

O thriller que interessa. Filme de 2003 do realizador sul-coreano Bong Joon-ho, que estreou este anos nas nossas salas o excelente "Mother", mas que em "Memories of Murder" realiza uma verdadeira magnum opus dentro desse género tão predominantemente americanizado do filme obcecado em seguir o rasto de um serial killer de rosto anónimo. Não é o plot que me leva a colocar "Memories of Murder" aqui, mas o nível de inspiração de cada plano; no fundo, toda uma arquitectura visual, que é um assombro. Urge uma edição deste filme em Portugal.

10 Rillington Place

Richard Fleischer em Londres, tenebroso e gélido. Foi o filme de terror mais brutal que vi este ano, onde tanto John Hurt como, acima de tudo, Richard Attenborough têm interpretações que nos cravam a pele pela sua lancinante crueza. Fleischer é magistral a criar o ambiente sinistro adequado a uma Londres cinzenta, "sem estação", assombrada por uma série de homicídios cometidos na morada que dá título ao filme. Numa palavra,"10 Rillington Place" (mostrado no canal TCM) é um dos mais aterradores pedaços de "não-ficção" pós-clássica passada numa Londres sob a ameaça de um psicopata pervertido (superior a "Peeping Tom" e a "The Collector", e, talvez, maior que "Frenzy"...).

O noir do ano

Foi "Pépé le Moko" , provavelmente, o primeiro noir da história do cinema, entre o gangster movie norte-americano e aquilo que se veio a institucionalizar como um estilo autónomo dentro do estilo maior de Hollywood: o film noir. "Pépé le Moko" é obrigatório para seguidores do film noir americano, na medida em que abre portas para todo um universo que carece, hoje, de uma maior divulgação: os primórdios do noir, em pleno coração do realismo poético francês, de que um Marcel Carné e Julien Duvivier ( o realizador de "Pépé...") foram nomes cimeiros, mas que acabaram por ser engolidos por nomes como Vigo e Renoir. "Pépé le Moko" tem tudo aquilo que adoro nos clássicos do género, de Dassin, de Huston, de Lang, de Hawks, de Dmytryk, de Tourneur, etc.: estilizado labirinto mental, com EXPRESSÃO no cenário e no próprio plot, entre a sedução e o crime, a culpa e a redenção, onde as mulheres e homens são víboras e santos ao mesmo tempo. O final de "Pépé le Moko" ainda arrepia visto hoje - eu disse visto? Ainda arrepia recordado neste instante, enquanto escrevo!

Para o próximo ano espero aprofundar a obra de alguns destes cineastas e de outros que tenho em vista, como Hong Sangsoo, Josef Von Sternberg, Mikio Naruse, Frank Borzage, Chantal Akerman e Joseph Losey. Até lá, bom ano!

2 comentários:

João Lameira disse...

Só devo ter visto uns dois filmes do Budd Boetticher, mas só por um, "The Tall T", vale todas as menções e elogios do mundo. (Já agora, o Randolph Scott, o seu actor, também.)

Luís Mendonça disse...

Não vi "The Tall T". Será o próximo.

Só vi quatro filmes de Boetticher, praticamente seguidos, graças ao canal Hollywood.

Todos da fase Randolph Scott, de facto, uma "empresa" muitíssimo bem sucedida.

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