sábado, 16 de julho de 2011

Detour (1945) de Edgar G. Ulmer


A velocidade com que a história de um série B de Edgar G. Ulmer - ou, por regra, outro qualquer - se desenrola deve-se simplesmente a isto: é preciso que o espectador não respire, porque se, suponhamos, tiver esse tempo para respirar, isto é, tempo para oxigenar o cérebro, irá, por momentos, desprender-se do plot, irá, em primeiro lugar, atentar no décor e adereços pobres, na realização e direcção de actores feitas em cima do joelho e ganhará distância suficiente para detectar todas as mil e uma incongruências da história, de tudo, na realidade.

Penso que os filmes que se realizaram em duas semanas ou pouco mais da autoria de grandes "working men" do cinema como Ulmer ou Corman ou mesmo Preminger (o low-budget noir "Angel Face" é disso exemplo) padecem desta espécie de desassossego permanente muito por razões técnicas/orçamentais que inevitavelmente se traduzem numa estética. A verdade é que instutiram um MODO específico de contar histórias, narrativas que, entenda-se, têm de ter tudo lá dentro que cause emoção - mulheres, amor, vingança, morte, fuga, polícia, ladrões, prisões, mais mulheres... tudo de rajada, de preferência. Sabemos que este verdadeiro "pacote de emoções" (emotions como emoções "put in motion") impactou indelevelmente os mais insaciáveis amantes do cinema, como, por exemplo, alguns dos ciné-filhos da Nouvelle Vague, à cabeça, obviamente, Godard ("À bout de souffle" é ulmeriano) e Rivette ("Paris nous appartient" também tem o seu quê de ulmeriano), o que se percebe sem dificuldades.

Cineastas como Ulmer, mas não esquecer nunca Corman, baixaram a fasquia do modo de produção mainstream da grande indústria até ficar à altura de quem ama o cinema - amar o cinema é amar os maus filmes, tanto quanto os bons, amar o cinema será, para esta gente que fazia filmes em duas semanas, uma necessidade que supera qualquer busca autoral de um estilo próprio. O que é preciso é fazer filmes, em simultâneo, com ou sem actores de jeito, com muito ou quase nenhum dinheiro - amar o cinema é uma urgência! Ulmer falhou várias vezes até encontrar um equilíbrio entre todas os constrangimentos logísticos e financeiros e um modo de storytelling bem como uma estética capazes de absorver todos os impactos, galopantes, irracionais..., infligidos pela sua condição de cineasta de bolsos furados.

Um "pacote de emoções" é como um "pacote de medidas de austeridade" que temos de administrar com redobrado cuidado; e, nessa matéria, "Detour" é um verdadeiro "filme-troika" exemplar, porque converteu a tal velocidade "incongruente", estrutural às narrativas dos série B, numa imagem - um homem + carro + estrada - e fez-se revolver em ambiência onírica - que se haveria de tornar canónica do noir - para "desculpar" não só a "pressa" como uma certa "pobreza cénica" de todo o filme - contado num flashback que parte de um estado de espírito perturbado, muito convulso, espiral doentia em alta "rotação"... Portanto a imagem perfeita que Ulmer encontrou, para fazer a sua obra-prima, foi esta: um sonho + um homem + carro + estrada + o resto. O resto é, mais propriamente, os ingredientes de um "bom filme" de mistério e tensão; o tal "pacote de emoções" que nos vai sendo injectado, quando deve ser injectado, com vista à produção de choques que logo se contrabalançam com contra-choques.

"Detour" é um filme que só é um dos noirs mais brilhantes de sempre, porque não custou um chavo, porque foi filmado em meia-dúzia de dias, porque tinha atrás das câmaras um realizador que sabia precisamente ao que vinha e com o que é que podia contar - quase nada. Esse quase nada, combinado com a tal "imagem da justa medida" do cinema à la troika, é habilmente moldado dentro de um estilo rough, quase negligente, embrutecido, feroz e veloz... não há espaço para "respirações inúteis" porque o filme - o calendário de filmagens, o dinheiro disponível, o realizador, mas depois a história e a personagem lá dentro que está, também ela, numa espécie de "corrida tensa contra o tempo" -, digo, porque todo o filme TEM de nascer directamente das suas circunstâncias internas e externas, isto é, todo o filme TEM de nascer dessa tensão. É essa a lição, muito incoerentemente coerente para tanta (boa) gente, que tenho aprendido a assimilar enquanto vou vendo filmes de Ulmer.

3 comentários:

Álvaro Martins disse...

Completamente de acordo. E é o único filme do Ulmer que conheço, que mais aconselhas?

Luís Mendonça disse...

Do Ulmer recomendo o "Strange Woman", com a belíssima Hedy Lamarr e o George Sanders, e, dentro do série B, o sci-fi "Beyond the Time Barrier".

O "Bluebeard" também é um filme interessante.

De resto, há quem adore o "Black Cat", que, a meu ver, tem as suas virtudes, mas parece-me sobrevalorizado.

Claro que nunca será de mais recomendar a quem não viu um dos mais belos filmes do século passado: "People on Sunday", o clássico mudo alemão de que Ulmer, com Billie (ainda sem "y"!) Wilder, com Zinnemann e com Siodmak, também foi realizador.

Álvaro Martins disse...

Obrigado pelas recomendações, já vou procurá-los ;)

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