domingo, 8 de janeiro de 2012

Martha Marcy May Marlene (2011) de Sean Durkin


Martha, Marcy, May, Marlene. Quatro nomes que são uma pessoa ou então - esqueçam as vírgulas - quatro pessoas que são um nome. O primeiro filme de Sean Durkin, com título sem vírgulas, vive desta dúvida identitária e faz dela alimento para a personagem principal ganhar forma à medida que o seu pesadelo-sonho tenebroso-encantado se desenrola à nossa frente em flashes que fundem, confundem e afundam o presente no passado. Há um convite para nos deixarmos "sugar" pelo abismo invisível que a câmara abre no rosto de criança de M - não interessa se M é de Martha, de Marcy, de May, de Marlene, de Matou, não interessa até se M é de éme. M desdobra-se à medida que a ferida se vai abrindo mais e mais, aspirando-nos - num suave crescendo - para um passado traumático e - ainda - traumatizante desenrolado como um novelo no coração de uma seita "transcendentalista" de propósitos obscuros.

O grande arquitecto deste projecto humano de contornos misteriosos, onde a violação faz parte de um ritual de passagem obrigatório para as mulheres e onde morte significa "amor puro", é a diabolicamente sedutora personagem interpretada por John Hawkes - actor que vimos em grande forma no surpreendente "Winter's Bone". É ele a figura tutelar, o grande pai, desta comunidade de jovens, fugidos de casa, atormentados pela "vida em sociedade", e que buscam uma nova "existência", livre das exigências do formatado mundo dos adultos. M aparece-nos, logo no início, em fuga e assim fica mesmo quando o filme termina.

Este estado de fuga permanente - entre o passado e o presente, como também entre os diferentes "émes" do seu nome - conflitua a dois níveis: um puramente mental, em que, como a própria admite, o sonho e a realidade se misturam indistintamente; outro "de facto", em que a vingança sobre a sua deserção é pressentida. Com efeito, M está a apenas 3 horas da comunidade onde viveu dois anos de lavagem cerebral e não sabe como fugir dela/deles no presente, pelo que entra num quadro depressivo profundo - e será a partir dele que o tecido formal de "Martha Marcy May Marlene" vai sendo produzido pela câmara de Durkin.

A certa altura, M diz que não sabe fazer tricô, contudo, o tricô já está a ser feito, não pelas mãos, mas pela e na sua cabeça. Entre o sonho e o trauma, com a realidade entalada no meio, esta é uma primeira obra de inquestionáveis méritos, que joga no território de Van Sant ou de um Cuesta amadurecido, fazendo da ternura diabólica da personagem de Hawkes um dos motivos de maior "provocação" ao espectador das realidades a preto e branco. É curioso aliás como aquele idílio infernal - paradoxo bem resolvido por Durkin, pela forma como filma o "campo de concentração", e aqui "a concentração" é mesmo um dos principais leitmotifs filosóficos - consegue ser menos opressivo que a casa demasiado grande, demasiado "de catálogo" do casal de classe-média alta, constituído pela irmã de M e o seu endinheirado marido. Em cada um desses lugares (se calhar até mais no segundo do que no primeiro), M é uma espécie de estrangeira e assim permanece até ser libertada pela doença para uma situação de "quase-autismo", em que responde com a agressividade do passado recalcado às solicitações maternais da sua irmã no presente. M distrai assim as duas realidades com a sua doença - que, a bem dizer, não se sabe ao certo se precede, ou não, os eventos traumáticos que a sua cabeça encena, isto é, "põe em cena" durante o filme. Será que houve mesmo seita, que se praticaram aqueles actos, que isto e aquilo? Afinal, por que M "fugiu" da irmã há dois anos?

Eis um filme que, à la Van Sant, levanta mais perguntas do que oferece respostas. Claro que podemos dizer que Durkin quer tanto fugir às explicações que acaba por tornar a ausência de explicações numa explicação para tudo e para nada; ao ponto da psicose começar a afectar a intencionalidade do filme, ou não será que o espectador em momento algum sentiu que M e o seu sadismo psicótico eram pretextos para algumas aleatórias exposições sobre uma certa "mal resolvida e ferida de morte" adolescência norte-americana? "Martha Marcy May Marlene" deixa, por isso, essa sensação de querer tanto evitar "olhar-se ao espelho" que acaba por arriscar - um risco pouco arriscado - extrair deste apenas a ausência de uma imagem; a certa altura, Durkin parece não conseguir enfrentar nem o presente nem o passado, porque parece - e "parecer" é suficiente para desconfiarmos... - ter medo de perturbar a deambulação mental, suavidade tortuosa, low key, quase "sobre nuvens", de tudo. Digo até mais: a certa altura, já nem perguntas o filme levanta ou apenas repete as mesmas em registos visuais e sonoras habilmente nuançados, mas não muito, nunca "demasiado" dissonantes, porque Durkin não quer e, de facto, não cometerá o atrevimento de acordar a sua protagonista e, com ela, o filme do seu "sono pesado de pesadelos leves".

Esta "lisura estética" choca, a meu ver, com as oscilações dramáticas que se vão ensaiando e que, por vezes, parecem servir exclusivamente para restituir o ritmo cardíaco baixo, posto estrategicamente naquele limiar com a morte, da narrativa - por exemplo, a cena, algo desconexa, do homicídio aparece, a meu ver, como que para evitar que o torpor da história degenere no entorpecimento do espectador, que é assim arrancado à bruta da sua "zona de conforto", para onde entretanto (sem mal ou pecado) se recolhera. Apesar de tudo, a jovem actriz e as sempre poderosas aparições de Hawkes disfarçam bastante bem as insuficiências geradas pela, talvez, ainda algo "hesitante" mão deste promissor jovem cineasta.

("Martha Marcy May Marlene" foi uma das apostas, mais concretamente, a quarta aposta do CINEdrio para este ano de 2012. Aposta ganha? Sim, mas sem entusiasmos excessivos.)

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