domingo, 5 de agosto de 2012

Gigi (1958) de Vincente Minnelli


"Gigi" é, como vários musicais clássicos, o resultado do somatório simples de certos elementos, desde logo, uma história de amor e o cenário parisiense do princípio do século XX, encantador na proporção da sua artificialidade. Ele é o motivo para os vários temas dedicados ao "amor romântico" na cidade das luzes, um cliché que encontramos frequentemente em Hollywood (veja-se o remake musical de "Ninotchka", ou o filme de Lubitsch propriamente dito, "Silk Stockings" de Rouben Mamoulian). Ainda assim, apesar de pairar no ar, ele (o tal "amor romântico") acaba desafiado por uma espécie de versão bondosa e inocente de "Lolita": o solteirão mais pretendido da cidade, e talvez do mundo, acaba apaixonado pela pequena "Gigi", que mal ainda se fez mulher, que ainda salta, se ri, faz batota nos jogos de cartas como uma criança pequena.

Este é "o problema" que "Gigi" coloca às suas personagens. Mas há quem passe olimpicamente ao lado de qualquer problema. E quem é ele? Maurice Chevalier, um já velhinho Maurice Chevalier, não exactamente aquele garboso e matreiro galanteador dos filmes musicais (extraordinários, aliás) de Lubitsch, mas, ainda assim, garboso e matreiro ("a prince of love", como uma ex-amada lhe chama...) quanto baste para o identificarmos em segundos. O actor francês desempenha o muito novelesco papel de "narrador participante" neste musical de Minnelli; ele localiza-nos no tempo da acção e lança o mote para o filme: "Thank heaven for little girls!", título (só ambíguo hoje, para as mentes cheias de minhoquices) que identifica o espírito "namoradeiro" dessa grande figura do cinema romântico musical, espírito esse que, a partir de ali, se estende ao resto do filme.

Mas não há problemas para o velho Chevalier, ele próprio diz, noutro momento delicioso de cantoria, que na idade em que se encontra tudo lhe passa ao lado. Parece, de facto, que tudo lhe vai passando ao lado, apesar  do seu efeito na história ser o do mais doce e sereno amortecimento. Basta o sorriso rasgado, as tiradas do estilo "ah, eu sei como é, eu já vivi isto tudo...", para, de imediato, o qualificarmos como o mais acertado "narrador participante" para esta história - termo inexacto, na medida em que a sua personagem, antes de ter aptidões para narrador, era já um muito activo participante.

A certa altura, a sua personagem encontra um amor antigo, sentam-se à mesa e lembram os tempos idos. Lembram? "Tenta" lembrar-se ele, o ainda galante Chevalier, que começa com a frase que se tornará refrão para o encontro (en)cantado: "I remember it well". Desde logo se percebe que o nosso simpático "participante narrador" não se lembra de quase nada, mas depois a sua antiga amada, num momento de arrebatadora cumplicidade amorosa ou nostalgia romântica, responde cantando que "It warms my hearth to know that you remember still the way you do". "Ah yes, I remember it well", responde Chevalier. Verdadeiramente, conseguimo-nos lembrar, e lembrar bem, tendo esquecido quase tudo? Minnelli encena esta pergunta, dentro do espírito light do musical, mas a sua complexidade persegue-nos para lá da magia e romantismo de fim de tarde. Só essa cena vale por todos os fracassos do filme, só essa cena nos faz esquecer - mas de facto! - a moral datada e algo equívoca de "Gigi".

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