Para abrir, «Raoul Walsh e eu» de Louis Skorecki. Tradução (autorizada pelo autor) realizada por Carlos Natálio, com o apoio inestimável de António Rodrigues, programador da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. Aqui vão alguns excertos:
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-Num primeiro momento, era preciso acreditar na ideia de que o autor de um filme era o cineasta. E num segundo momento, fazer a divulgação de outra ideia – Godard reconheceu-o mais tarde – a saber que o autor, o verdadeiro, não era tanto o cineasta mas o jornalista que o tinha inventado, este disparate da política de autores.
- É freudiana essa ideia. O autor não seria Walsh, desprezado à época por toda a crítica de cinema mas um crítico mutante, Godard por exemplo, prestes a inventar Walsh aos olhos do mundo e que diz: “Sou eu, o autor, o cineasta que há-de vir, vocês vão ver o que hão-de ver”. Claire, é brilhante a tua ideia.
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Na sala de aula espalhou-se um frio à chegada do professor. Importa dizer que este professor não era um qualquer. À época, em Abril de 1957, Henri Agel reinava enquanto filósofo cristão e sobretudo enquanto único professor de cinema em todo o mundo. E sim, é assim mesmo, jovens. Os tempos mudam, vocês falam nos corredores, sonham com grandes mamas, e a lua, essa, faz o seu cinema. Ele não espera por vocês, a lua. Agel estava irritado. Ele rabiscava a giz um assunto impossível para os borbulhentos dos fifties: “A relação entre o cinema de Raoul Walsh e o sentido do sagrado, visto sob o ângulo da tragédia shakespeariana e da noção de potlatch”. O problema é que os Walshes não os tínhamos visto. Vagas recordações de Errol Flynn em Gentleman Jim, uma noite no cineclube na escola de Voltaire, e é quase só isso. Nada, não sabíamos nada.
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-Um filme como Gentleman Jim ajuda-nos a quê?
-Esse é ainda mais fácil de compreender e amar hoje em dia. Scorsese, estás a ver quem é?
-O baixote ítalo-americano? O drogado? O maluco por cinema?
-Sim, esse. Viste o Raging Bull?
-Aquele em que o Robert De Niro engordou 800 quilos?
-Sim, sim. A câmara com os ralentis, toda essa masturbação sentimental e maneirista que conduz directamente aos piores legoismos de Wong Kar Wai (hei-de explicar-te um dia em detalhe essa hipertrofia da textura e da superfície, esse efeito infantil, esse efeito Lego que contamina tudo o que ainda chamamos de “cinema”, do Chéreau londrino a esse filme de culto para costureirinhas apaixonadas que é Requiem for a Dream).
-Já não estamos na época da crença, estamos na época da cultura, é isso? Isso é para os ricos, é isso? Então já não há nada a fazer.
-O “cinema”, sim, acabou. Olha para Silver River, por exemplo, ele nem sequer é a cores como as peças da Lego. E contudo o efeito lego está lá.
- Saturas-me com a tua “legoização”, meu amor. E Walsh? Tinhas prometido explicar-me.
Falar-lhe de jovens proletários, de rapazes jovens, a ela, à rapariga, isso tinha-a excitado. Ela viu as suas pálpebras crescerem. Ela não gostava disso, aliás mesmo nada. Ela já não precisava de fazer perguntas, de qualquer forma já tinha compreendido tudo. Não era nada parva a pequena. O legoismo ela percebia. Ela tinha crescido com os Lego, agora… O legoismo é como ver a gélida fotografia que Sid Hickox fez para Errol Flynn em Silver River, uma fotografia menos sonhadora que a de Gentleman Jim, mas vê-la com o declive colorido e o brilho das melhores peças da Lego. O cinema hoje é suporte/superfície e toda essa confusão. Para o sonho, tenta mais tarde.
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-E Walsh achas que se excitava com a Marlene?
-Sim e não. A Marlene é excitante mas para um pederasta. E Walsh não era homossexual. Ele não reprimia nem sublimava isso; os gajos não eram a sua cena. Ele teve a bela ideia de lançar nos braços da Marlene aquela bichona do George Raft. É bizarro, barroco mas funciona.
-O melhor é quando ela pinta os lábios para ele à saída da prisão.
-Não digas nada Claire, estou a ficar excitado.
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