quarta-feira, 25 de junho de 2008

O Poder da Imagem V: Videodrome ou Quando o Olhado Rouba o Olhar (I)

3. Videodrome ou Quando o Olhado Rouba o Olhar (I)

Na era do vídeo, ao que parece, somos aquilo que vemos

Alan Stanbrook (2006: 52)

Quantas vezes sofremos? Quantas vezes morremos? Quantas vezes matámos? Quantas vezes vivemos? … Para responder a tão arbitrárias e imponderáveis questões, qualquer um de nós, Homens do Ocidente, forjados num grande e borbulhante caudal mediático, teríamos de embarcar num exercício mnemónico de proporções abismais. No fundo, todos nós morremos, ceifámos vidas; fomos carrascos e massacrámos iguais… A resposta à pergunta “quantas vezes passamos por tais experiências?” só poderá ser acautelada se atendermos à longa lista de imagens que nos entraram pelos olhos dentro e às recordações que nos foram sub-repticiamente implantadas no córtex cerebral; ao acervo de experiências que vivemos na pele de outros, sobretudo, de outros imaginários – com efeito, confirma-se que “a realidade do homem é semi-imaginária” (Gorki) (Morin, 2001: 236).

Mais do que testemunha dos inomináveis crimes que se perpetram mesmo à sua frente, no grande e pequeno ecrã, o espectador, ou o “spect-acteur” [espect-actor] (Weissberg) (Nel, 2004: 82), é um dos seus mais conscienciosos executo­res. Perante o surgimento daquilo que Mongin definiu como “nova economia das imagens da violência”, até que ponto podemos falar de um fenómeno generalizado de dessensibilização do indivíduo?

Em Videodrome (1983), um filme de David Cronenberg, Max Renn, o “director de uma cadeia de televisão especializada em pornografia hard core” (António, s.d.: 67), procura um novo programa que explore limites nunca antes explorados em televisão, com vista a destronar a concorrência – a pornografia já não é suficiente para atrair espectadores, daí que seja imperioso encontrar uma fórmula ainda mais radical (“I´m looking for something that will break through – something tough”, diz Max Renn). A acção decorre numa era em que subsistem poucas restrições, éticas e morais, no espaço mediático. (...)

(alerta para spoilers, a partir daqui)

Em "Videodrome" (1983), encena-se um talk show impossível em que a televisão fala de facto sobre... televisão

Num talk show em que participa juntamente com uma vedeta da rádio, a enig­mática Nicki Brand, e o “profeta da comunicação”, Brian Oblivion, Max nega que os programas do seu polémico canal 83, a Civic TV, contribuam para um clima social de violência e vício sexual: “eu ofereço aos meus espectadores um escape inofensivo para as suas fantasias e frustrações. Quanto a mim, isso é uma acção social positiva”. Já o professor Oblivion, personagem que apenas vemos num ecrã de televisão, perante a per­gunta “acha que os programas eróticos e violentos levam à dessensibilização?”, res­ponde: “ O ecrã da televisão tornou-se na retina da visão mental. É por isso que me recuso a aparecer na televisão, excepto através de um televisor.”

Graças ao seu “amigo” Harlan, especializado em encontrar clandestinamente sinais televisivos por todo o mundo, chega aos olhos de Max, o programa Videodrome (vídeo + dromo): uma espécie de vídeo-arena onde se realizam torturas e assassínios – não há enredo nem personagens. “É muito, muito realista. Penso que é o futuro.”, diz Max Renn a uma das suas agentes. A mesma agente que, dias depois, lhe revela a paterni­dade de Videodrome: o professor Brian Oblivion . O próximo desafio de Max será encontrar-se, fisicamente se possível, com o grande arquitecto de Videodrome, que não fala directamente com ninguém há mais de 20 anos: “eu sou o ecrã do meu pai”, afirma Bianca Oblivion.

Cena de "Videodrome" (1983), em que James Woods é engolido pelo ecrã do seu televisor

Depois do encontro com Bianca, Max Renn recebe uma cassete de vídeo do professor Oblivion: “O ecrã da televisão tornou-se na retina da visão mental. Por isso, o ecrã faz parte da estrutura física do cérebro. Portanto, tudo o que aparece no ecrã de televisão emerge como uma experiência em bruto para quem a vê. E assim, a televisão é a realidade e a realidade é inferior à televisão… Max, muito me apraz ter vindo até mim. Eu já passei por tudo isso, sabe? A sua realidade já se tornou numa meia alucina­ção em vídeo. Se não se acautelar, tornar-se-á numa alucinação total…”.

De súbito, a pequena palestra do professor Oblivion é interrompida pela aparição de um vulto enca­puzado, que prontamente o asfixia até à morte. É a partir desse momento crucial que Max Renn é acometido de alucinações inequívocas: a face da sua amante Nicki Brand revela-se por detrás do capuz, sussurrando a este para vir ter com ela… A televisão humedece, liberta gritos arquejantes de prazer – “vem”, “não me faças esperar” – a que Max Renn responde, penetrando a sua cabeça nos lábios escancarados de Nicki Brand, inscritos no ecrã do televisor.

No dia seguinte, um atordoado Max Renn volta a consultar Bianca Oblivion, que lhe revela que o seu pai morreu discretamente há 11 meses atrás, numa sala de opera­ções. A causa de morte foi o tumor que Videodrome lhe provocou :“Não creio [que esta crescença na cabeça] seja um tumor, descontrolado, despistado, pulsante, um pedacinho de carne mas que é, de facto, um novo órgão, um novo segmento do cérebro. Penso que as vastas doses de sinal Videodrome acabarão por originar uma nova excrescência no cérebro humano, que produzirá e controlará as alucinações ao ponto de alterarem a rea­lidade humana".

Afinal, "nada de real existe fora da percepção da realidade (…)”, diz Brian Oblivion numa mensagem-cassete enviada a Max Renn). Com efeito, o falecido Brian Oblivion mantém-se vivo numa vídeo-existência, ou melhor, num conjunto de cassetes de vídeo que antecipadamente gravou, para que a sua mensagem não morra.

A clivagem entre o real e a alucinação acentua-se, à medida que Max se “deixa envolver” por Videodrome. É nesta altura que entra em cena Brian Convex, “arquétipo da vulgaridade mercantil americana” (Grunberg, 2006: 42). Afirma-se director de uma empresa multinacional, de nome Spectacular Ocular, que produz óculos baratos para o terceiro mundo e sistemas ópticos ultra-sofisticados para a NATO (Grunberg, 2006: 43) … e também o programa Videodrome (que descreve como sendo uma “grande fábrica de alucinações e muito mais…”).

A convite de Convex, Max desloca-se a uma loja da Spectacular Ocular, onde irá ser examinado por uma espécie de “capacete de alucinações”, “que permite decompor; visualizar e analisar as alucinações geradas pelo sinal “videodrome”” (Grunberg, 2006: 43). A alucinação total, que Oblivion vaticinará, inicia-se aqui: Video­drome transforma-se em puro exercício psicadélico, quase surrealista, em que Max Renn é objectivado numa espécie de autómato assassino, tanto ao serviço dos interesses monopolistas de Convex e do seu (falso-)amigo Harlan, como dos objectivos ambíguos de Bianca Oblivion e da sua organização.

Depois de ter morto os seus sócios, a mando da Spectacular Ocular, e de se ter rebelado contra Convex (morto à queima roupa) e Harlan (implodido), chegamos à admirável cena final de Videodrome, e importa descrevê-la nas palavras de Serge Grunberg: “A cena final é um suicídio, primeiro reclamado por Nicki no televisor depois mimado pelo duplo televisivo de Max, e no fim “realmente” efectuado por Max, em replay (Max, nesta altura, é já um gravador)”. Nessa cena, Cronenberg leva ao extremo o complexo identificação-projecção-transferência de Morin, mostrando que Max é, como Bianca Oblivion apregoara, “a palavra vídeo feita carne” (“the word video made flesh”).

(continua)

Bibliografia citada:

  • ANTÓNIO, Lauro, «Videodrome», in Cinema e Comunicação Social, Festival Internacional do Cinema de Portalegre, s.d., pp. 67-68;
  • GRUNBERG, Serge, «alucinação ou o paradoxo do cinema», in David Cronenberg: a expressão nua, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 2006, pp. 36-47;
  • MORIN, Edgar, O Cinema ou o Homem Imaginário, Relógio d´Água, 1997;
  • NEL, Noel, «A dimensão afectiva das imagens violentas nos media contemporâneos», in revista Media & Jornalismo, n.º4, 2004, pp. 73-91;
  • STANBROOK, Alan, «Os cancros criativos de Cronenberg», in David Cronenberg: a expressão nua, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 2006, pp. 47-55.

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