Este diálogo recortado de "36 vues du Pic Saint Loup" (2009) não é diálogo nenhum: Kate, personagem interpretada por Jane Birkin, fala consigo mesma, lamentando o facto de, há 15 anos, ter "fugido" do circo onde trabalhava, onde morava, onde amou e viu morrer tragicamente o objecto desse amor, ali, na arena colorida.
A imagem é poderosa, já que sugere, retoricamente, a figura de um "hit and run existencial": Kate abandonou "os seus" quando estes mais precisavam dela, pouco depois de ter tido lugar o "crime" que fez desaparecer para sempre o homem que amava - morte sobre a qual a sua consciência reclama "direitos de autor". O crime do hit and run não acontece, portanto, só com carros. Com eles, de qualquer modo, o crime pode não estar no hit (se este for puramente acidental), mas apenas no run (é a fuga que converte a inocência numa assunção cobarde de culpa).
O filme de Rivette traça a genealogia de um castigo com uma natureza circular, viciada, bloqueada, "às voltas" sobre si mesma; enfim, um problema rotundo. Partir e regressar, dois gestos que decalcam, não retorica mas visualmente, o circulo da arena colorida (do circo) onde Kate não quer entrar, mas que é incentivada a isso por Vittorio, o homem providencial que vive ou em "fuga" ou, simplesmente, em movimento, ele que está ali para resolver "avarias", mecânicas e sentimentais: cure and run é a solução que encontra para uma fuga sem culpa dessa rotunda chamada Kate.
Kate: (...) Fui uma criminosa. Não o ultrapassei. O meu castigo foi ter partido... O meu castigo é regressar... (...)
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