quarta-feira, 13 de junho de 2012

A Torinói ló/O Cavalo de Turim (2011) de Béla Tarr e Ágnes Hranitzky (III)


(5) o pai é auxiliado pela filha para se despir... Quando chega a casa, o pai despe a sua roupa de cocheiro e veste a sua roupa de casa, servindo-se, para isso, do auxílio da filha. Este gesto repete-se várias vezes no decurso dos seis dias em que vivemos naquela casa, com as personagens de "O Cavalo de Turim". A imagem do pai deitado, que parece saído do quadro de Andrea Mantegna, "Cristo Morto", é seguida sempre do ritual de vestir, um vestir não sobre a pele nua, mas sobre a roupa de dormir. Há sempre uma roupa para cada acção, como se o corpo fosse, de algum modo, "demasiado insuficiente". Depois de vestida a roupa do trabalho, o homem sai de casa com a filha e prepara, também invariavelmente sem efeito, a viagem de coche.

O cavalo não come, logo, o homem tem de regressar à sua casa e, dentro dela, vestir-se, pela mão da filha, em conformidade com o seu novo estado: o estado de quem espera e de quem apenas resta a actividade do tempo, uma luta contra ele, a mais passiva e interior das lutas. A companhia da filha, tal como toda a sua presença no filme, sublinha o lado uno deste binómio, recordando aquele filme de Sokurov, "Mãe e Filho": dois seres que, no fundo, são um. A filha põe em funcionamento tudo e quase se reduz à sua função, mas também quase se reduz a esse "tudo", por isso, não podemos dizer que não a sentimos com a mesma comoção com que sentimos o seu pai (e nisso se equivalem).

Com a roupa de casa, uma manta ou não a protegê-lo do frio, o homem velho, porque só um dos seus braços serve para cortar lenha, ocupa grande parte do tempo a, precisamente, assistir à sua "dissolução" no ar - como a poeira que rodopia lá fora, como a célebre frase marxista, "tudo o que é sólido se dissolve/desmancha no ar". Claro que uma recuperação miraculosa do cavalo pode precipitar "a viagem" tão aguardada e, em certa medida, tão necessária, mas neste filme o grande milagre, milagre muito terreno, deu-se com Nietzsche e o seu enlouquecimento "beatificante".

A imagem - que não vemos - do filósofo alemão agarrado ao animal, naquela paisagem empobrecida, quase sem alma, não deixa de assombrar todo o filme e aproximá-lo do misticismo secular de um "São Francisco, Arauto de Deus" de Roberto Rossellini. O cenário apocalíptico, que chega ao nosso conhecimento através do único "forasteiro" que entra em casa dos protagonistas, parece também compor esta doença-mundo provocada pelo ocaso do autor de "O Anticristo", leia-se, pelo seu engrandecimento espiritual - pela sua "santificação" terrena - no momento em que abdicou de existir em solidariedade com o sofrimento de uma "criatura menor". De facto, não há "criaturas menores" em Tarr.


(6) o travelling/a viagem, como todo o découpage, é temporal... Já deixei implicita esta ideia, mas convém aprofundá-la neste ponto. Apesar de falarmos de transporte, de coisas, de pessoas e animais, do transporte dessas coisas, dessas pessoas e de animais - ou através do cavalo -, a verdade é que é o tempo como personagem que sobressai na acção de "O Cavalo de Turim". O tempo está presente na ideia de repetição, já analisada no ponto 4 desta análise, bem como na ideia de morte, que também já aflorei, mas que culmina na própria carga testamental que todo o filme, o último (last e não latest) Tarr, carrega às costas, na ideia de que, talvez, o cinema do húngaro apenas se possa sepultar nas suas próprias imagens - não há espaço na História do Cinema, ninguém o chorará, ninguém se enlutará... salvo nós no espaço das suas imagens. Repetição e morte, uma espécie de reformulação da ideia de vida como ciclo, não o tradicional "nascemos, vivemos e morremos", mas o mais pessimista "viver não existe, apenas o morrer progressivo, a cada gesto".

Morremos um pouco mais sempre que nos repetimos, sempre que "usamos" as nossas coisas - adquirir, degradar, degradar, adquirir, como diz o "profeta" forasteiro, mensageiro da morte (mui nietzschiano), que "invade" a casa... e que aqui trago em still - e somos "usados" pelo tempo que corre indiferente aos pequenos assuntos humanos - mas não descartamos que este reaja aos gestos que destroem a repetição, que se desembaraçam de qualquer ideia de posse ou propriedade, gestos como o de Nietzsche agarrado ao cavalo. E se falamos de tempo como duração também falamos, obviamente, do tempo meteorológico, partes do mesmo todo em "O Cavalo de Turim". Percebemos que esse tempo parou algures lá atrás (em off) e que, desde o primeiro plano, reinicia, reforçado, a sua senda de degradação das coisas, dos animais e dos homens. O cinema de Tarr sempre foi um cinema de mortos ou de mortos-vivos, ao ponto de, tantas vezes, nos conformarmos com o destino trágico das suas personagens: num mundo desumanizado, já-morto, qual o sentido de "viver"?

"O Cavalo de Turim" guarda estes fantasmas - a imagem espectral da filha à janela, que analisei no ponto 4 é suficientemente expressiva neste sentido. Mas a co-habitação entre nós e as suas rotinas acaba por representar a fuga mais terrível de Tarr  a essa desumanização: estando ali, com eles, compreendendo-os na sua existência, acabamos também nós, espectadores, por nos "sentirmos espectros" no nosso mundo - e o efeito de "desfasamento" depois da sessão, com tudo o que nos rodeia, é apenas o primeiro sinal de que Tarr transformou a sua visão desumanizada do mundo, a sua ontológica indiferença a nós, espectadores, numa forma de acção: os fantasmas saíram do filme para nos assombrar, até ao ponto em que também nós nos tornamos parte dessa "grande família espectral", a humanidade segundo Tarr.

(continua)

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