Em "Cosmopolis", não estamos num mundo feito de ecrãs, próteses, pacemakers, extensões mais ou menos visíveis de uma realidade ameaçada pela sua própria extinção, mas já num mundo feito ecrã, contra o qual o corpo resiste e reage, como um anti-vírus. A realidade ganhou uma nova pele: não é que ela seja extensão de algo, ela con-funde-se com esse algo. Mas esse algo é sempre estranho, leia-se, sempre exterior - uma alteridade ainda não plenamente inscrita nos corpos (impura informação pura). Giamatti dá conta deste desfasamento, entre a realidade feita ecrã e os corpos, quando resume a sua angústia: há sempre um eu e os outros, um é informação para outros, mas não entidades do mesmo mundo... isso nunca - e jamais?
É essa disjunção, esse agravante desfasamento, que "Cosmopolis" trata. Desde logo, porque é feita uma distinção explícita (pornográfica) entre o "dentro" e o "fora", entre o interior da limusina-escritório e o exterior que vemos "desfilar" através dos vidros do carro ou em informações dadas pelo "guarda-costas" do nosso protagonista. Esta "ecranização" do mundo não é amenizada pelo nosso ponto de vista: apesar de estável, e "presente", a vida no interior do automóvel, e o seu passo lento, fúnebre, apontam para um caminho sem retorno, em direcção à morte. Smoothly...
A imagem de Robert Pattinson (actor do ano, até ver), com o seu fácies pálido, os seus gestos minimais, as suas palavras automáticas - e sente-se o magnífico texto de DeLillo, sente-se mais como excreção cerebral do que como expressão humana... - contribui sobremaneira para a definição do sintoma: o corpo, isolado que está na sua carapaça metalizada, ou no seu sarcófago sobre rodas, por muito limpo, por muito sujo, por muito vivo que esteja, não sobreviverá à "ecranização" do mundo, ao devir-medium, ao devir-informação de tudo. O que Pattinson-herói procura resgatar e compreender é a tal "deformação", o que resta de irrepresentável neste mundo que nos é "enviado" sob a forma de gráficos, imagens de TV, imagens feitas TV.
Um mundo, como também se diz a certa altura, onde até a palavra "computador" soa anacrónica - a tecnologia desaparece com o corpo, para que uma realidade, uma hiperrrealidade parida em resultado desse confronto fatídico (corpo vs. tecnologia), venha produzir uma existência puramente vicária ou "informacional" (pós-"Videodrome"). Fala-se de cheiros, fala-se de sexo como parte de um "programa de vida" (um problema de soft ou hardware? Não, um problema desse ware chamado realidade), fala-se de segurança (ameaças, intrusos, "rats", etc.) e de irregularidades (o tal irrepresentável, a tal assimetria da próstata, grande lição de moral que salda o caminho auto-destrutivo do nosso herói). A ironia é fria como o metal, porque aqui a resistência, a grande Resistência, não está nos grupos que incendeiam as ruas, lançam tartes aos homens do Capital, todos eles pertencem já a essa realidade feita ecrã.
Esqueçam Che Guevara: Pattinson, na pele de um especulador multimilionário, "o homem da limusina", é o grande guerrilheiro libertário. Giamatti diz que esperava dele a sua salvação, ao mesmo tempo que o ameaça de morte, antecipando uma espécie de "crucificação" cínica não do "homem que destruiu o mercado" mas do homem que, confundindo-se com ele, se quis suicidar, pelo menos, "virtualmente". E isso porque ele acaba por perceber que o que está em jogo, sob pena de se perder para sempre, não é o "complexo" empresarial que dirige, nem a sua fortuna individual, nem o projecto de uma "ratazana como unidade monetária" da turba contestatária, mas sim o "sentir-se vivo" do seu corpo em dissolução num mundo-ecrã sem salvação possível - eis um tratado não sobre uma "fortuna", mas sobre a "Fortuna" do Homem.
Aqui, Pattinson (actor da saga "Twilight") continua a ser o "vampiro sexy no caixão": a sua sede de sangue, mesmo seu, a sua fome de sexo, a obsessão pelo seu "corpo humano" em extinção - nos exames procura ele a imagem gráfica dos seus órgãos ou a confirmação do seu médico de que está e continua vivo? - mais a fetichização do seu embalsamento metálico ("Crash redux"), o seu devir-limusina, convertem-no na representação alegórica mais desafiante do nosso mundo contemporâneo ("mundo demasiado contemporâneo", dir-se-ia, citando-se de novo uma das inúmeras tiradas deste texto magnífico). Ou, pelo menos, desde que Ferrara, outro apocalíptico de luxo, decidiu acabar com ele, às 4:44.
2 comentários:
Voltei ao Cosmopolis, com uma revisão necessária. Se já tinha gostado, gostei ainda mais.
Antes de me encaminhar para o livro, parei em várias críticas e textos. De todos, o teu é o melhor. Fazes um link muito generoso para o texto do Vasco Câmara que, ao pé deste, é de uma pobreza vergonhosa.
Os holofotes estão todos trocados neste palco: e depois queixam-se de que não há crítica em Portugal.
Obrigado Sabrina, és muito gentil.
Fico também contente por ver mais fãs de Cronenberg a não se deixarem levar "pela onda negativa" em torno deste seu mais recente filme.
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