terça-feira, 12 de junho de 2012

A Torinói ló/O Cavalo de Turim (2011) de Béla Tarr e Ágnes Hranitzky (I)


Em off ouvimos "a história". Século XIX. Nietzsche agarra-se a um cavalo que é fustigado por um cocheiro. Pouco depois, enlouquece e cala-se para sempre.

Depois, as imagens acendem-se como uma lamparina antiga e ouvimos, em on, cada plano. (1) Um cavalo em primeiro plano agita-se enquanto locomove o homem na sua carroça, (2) o vento revolto é sinalizado pela poeira e folhas secas que circulam pelo ar num turbilhão, (3) batatas fumegantes cozem ao lume e, em pratos circulares de madeira, são despidas da sua pele pelas mãos calejadas do homem velho, (4) o homem velho faz como a filha antes do almoço e senta-se em frente à janela, (5) o pai é auxiliado pela filha para se despir e para se vestir (ainda uma questão de "pele"), (6) o travelling/a viagem, como todo o découpage, é temporal, apesar da presença inabalável do espaço e das coisas, (7) o "tempo fechado" sopra enquanto o velho e a filha esperam pelo cavalo, (8) transportam-se coisas na carroça como se fosse possível transportar todas as imagens do filme, (9) a roda gira ao passo do homem e ao trote do cavalo (ao trote do homem?) como as coisas giram, dis-cursam, à volta do mesmo ponto em todo o filme, (10) a janela e o cavalo são símbolos de uma outra experiência do tempo, o primeiro um segundo ecrã no filme, o segundo uma questão de transporte, logo, também uma questão de meios (media).


(1) Um cavalo em primeiro plano... O primeiro plano de "O Cavalo de Turim" é um tour de force. Na obra de Béla Tarr, só talvez as primeiras imagens de "Sátántangó" lhe podem chegar perto, por despertarem o mesmo tipo de chamamento ancestral sobre o olhar, cada vez mais desmaterializado, cada vez mais "longínquo" e "fantasiado", do espectador moderno. Um cavalo faz mover uma carroça. A câmara acompanha a viagem, alternando entre o plano apertado sobre o rosto do animal e o plano geral da carroça. Neste ponto, o travelling é mesmo um travelling: testemunho de uma viagem (quem viaja é o homem) e simulação de um movimento orientado por um corpo (que é o do cavalo, o animal).

Não se trata, portanto, apenas do plano de uma carroça, porque, para isso, Tarr teria optado por filmar o conjunto (homem mais cavalo). O que o realizador húngaro faz é mostrar um cavalo e um homem, o que só é possível, precisamente, através do gesto do plano contínuo que alterna entre os dois, o cavalo mais o homem e o cavalo (= carroça). Aqui reside, em toda a sua pungência plástica, a gravitas cosmológica da câmara de Tarr: ela gravita em torno dos corpos, como astros em torno do sol, indiferente, enfim, ao peso cultural e humano das coisas, aproximando-se portanto de uma ideia ontológica significativa: o plano deve ser mesmo plano, como a realidade que nos aparece à frente, o que não quer dizer que destituída de profundidade e da tal... gravitas - esta emana, naturalmente, das pessoas como dos animais como das coisas... a câmara deve apenas planar no tempo e no espaço para captar esta Verdade.

A maravilhosa cena inicial de "Werckmeister harmonies" é suficientemente paradigmática: em noite de borga, numa tasca "esquecida" no mundo, o protagonista encena o movimento do cosmos, transformando os companheiros de copos em planetas e em luas e fazendo-os girar à volta de si e entre si. Sob a égide de um cinema como o de Andrei Tarkovski (a sua mais notória influência cinéfila), a câmara de Tarr acompanha estes movimentos como que vinda de Cima... Ela aterra para planar sobre os homens, os animais e as coisas; para despertar, enfim, os seus mistérios mais profundos - tudo é um planeta, tudo é homem e tudo é coisa e, antes de mais, dirá Tarr, tudo é animal ou "tudo tem tudo" lá dentro. Veja-se como o homem é tão eloquente a comunicar com o cão (ou vice-versa?) no final de "Damnation" e como o olho de uma baleia atravessa o olhar humano para reflectir directamente os mistérios do universo em "Werckmeister...".

A câmara de Tarr plana sobre os corpos viventes, mas também sobre os corpos não-viventes (já lá vamos), e torna-os iguais entre si, encontrando uma espécie de vector originário que os atravessa. A sua profundidade está no facto de se tornarem planos - de se verterem, mantido que está o seu peso específico neste mundo visto a partir do cosmos, numa determinada duração de cinema. Daí o enigma e a claridade (= a claridade do enigma) daquele plano-sequência: um cavalo e um homem, os dois mexem-se, o primeiro puxa o segundo em direcção a algo ou a algum sítio, a câmara realiza esta dinâmica sem reduzir - e anular - o homem e o cavalo da imagem à construção audiovisual mais fácil e corriqueira. Com efeito, o primeiro longo plano de "O Cavalo de Turim", que está entre o episódio de Nietszche e o início do filme propriamente dito, que capta na eternidade das suas formas uma transitoriedade..., não representa e não é, de facto, o de "uma carroça em andamento".


(2) o vento revolto é sinalizado pela poeira e folhas secas... Os grandes cineastas aventuraram-se nisto: filmar o vento. Joris Ivens e Victor Sjostrom são exemplos de sucesso, Shyamalan, recentemente, com "The Happening", não conseguiu entrar no barco. Tarr, sobretudo em "Sátántangó", já tinha feito do vento mais do que "efeito de décor", muito mais do que isso - e Van Sant soube (re)interpretar este "vento Tarr" em "Gerry". Aqui, em "O Cavalo de Turim", a banda sonora é toda dele, do vento. As palavras foram reduzidas ao seu "essencial", o que num cinema de "essencialismos" assenta bastante bem. O mesmo não se passava, com a mesma economia, digo, nos filmes anteriores de Tarr. A forma como o vento, que é, por natureza, o "invisível", o "intangível", está aqui presente vai, a meu ver, mais longe que os anteriores processos ainda puramente fetichistas da sua manifestação sonora em contraste ou complemento com os outros sons, nomeadamente, os da palavra.

O vento é o grande protagonista e a palavra apenas surge para pontuar, logo verificar, a sua constância. Como escasseia, a palavra nunca fez fluir tão bem as imagens de Tarr. Se antes, "a história" e "o diálogo" pareciam mais um pretexto para as imagens do que parte do seu texto, agora, finalmente, Tarr parece ter encontrado o ponto de equilíbrio ideal: finalmente a palavra - e toda a sua dimensão eminentemente narrativa - vem das imagens, libertando-se estas dos constrangimentos "anedóticos" que tiravam autenticidade ao aparato formal, por exemplo, do "policial" "The Man From London" ou do "filme-apocalípse" "Werckmeister...", etc. O virtuosismo de Tarr já não é performativo - como, em parte, era antes - tal como o vento se tornou, enfim, a matéria que interessa à sua câmara e não tanto as palavras (previamente escritas em guião) dos actores. Tarr soube silenciar os humanos para fazer ouvir, mais alto e mais fundo, os sons dos seus gestos, movendo e re-movendo os pequenos obstáculos do quotidiano, e os sons da sua imobilidade, isto é, a "expressão" sonora da envolvência.

O vento que sopra lá fora não é, contudo, puramente sonoro e é aí que entra o lado visível do "invisível": fazer ouvir o vento é fácil, fazer vê-lo, quase ao ponto de  sentirmos que "tocamos nele", já é mais difícil. É aí que o fetichismo do vento entra em jogo e, desta vez, com a ajuda de um fantasma chamado Victor Sjostrom - para captar o mais-visível-do-invísivel, Tarr invoca e evoca um mudo! A poeira e as folhas são expiradas continuamente pelo vento lá fora e é com os olhos nelas que as personagens, sentadas na mesma cadeira, gastam parte do seu tempo. O tempo aparece aqui confundido com outro vector constante e "inultrapassável": o vento. Ao contrário do que se costuma dizer, não se sente aqui a "respiração do tempo", porque em "O Cavalo de Turim" o vento - seu alter-ego primordial - é uma "expiração contínua", sob a forma de um turbilhão regurgitante feito de pó e outros despojos da Natureza.

O espectáculo visual de "O Cavalo de Turim", para as personagens e, também, para os espectadores, está no lado-visível-do-invisível, o vento, isto é, no lado turvo e opaco da paisagem, dito ainda de outro modo, na maneira como Tarr pinta a paisagem pobre (quase quase tão pobre como o primeiro rascunho de um desenho a carvão) que rodeia a casa do filme. Como dizia Serge Daney, "The Wind" de Sjostrom desvelava o poder alucinatório do mudo - a sua capacidade de fazer ouvir os sons da vida. Ora, Tarr faz aqui algo analogamente notável que é tornar a pobreza visual de uma paisagem, a sua reduzida "visibilidade", no objecto de fascínio e de espectáculo para o olhar das personagens/espectadores. O "menos visível" tem fome de "ver mais", como o "não audível" pode desencadear a poderosa alucinação do som.

Da mesma forma, e citando Alexander Dovzhenko, outro cineasta do mudo, referência menos óbvia no universo de Tarr, também a imobilidade dos corpos produz puro movimento visual. Nas cenas em que, dentro de casa, a palavra é muda e os sons já não são produzidos pelos corpos humanos -  "no embate" com os objectos do seu dia-a-dia -, a paisagem parece invadir todo o espaço do filme - uniformizá-lo - pelo som (exterior) do vento omnipresente. O movimento visual é provocado pela inércia e virtualmente potenciado pelo som "que vem de fora". As personagens assistem ao exterior e nós assistimos a elas e ouvimos com elas o espectáculo lá fora como "um filme dentro de um filme".

Se "Arsenal" de Dovzhenko fosse sonoro, talvez tivéssemos experimentado este puro espectáculo de som, nomeadamente, em face daquelas poderosas imagens de mães abandonadas ao sofrimento pelos filhos na guerra e que, nas suas casas de madeira quase sem móveis, paralisam o corpo à espera de um sinal (sonoro?) vindo lá de fora, vindo de Deus. Sem grandes transcendentalismos, Tarr "actualiza" este meu delírio dovzhenkiano: e se Deus é, afinal, nada mais do que uma paisagem feita de vento, pó e folhas secas?

(continua)

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