Por que a nossa vida está tomada pelo descontentamento e a raiva? Esta pergunta levou Pasolini a uma viagem pelo século XX, estava este pouco mais do que a meio da sua vida, mas já marcado por duas grandes guerras, revoluções sangrentas pela Europa e pelo mundo fora; acima de tudo, em 1963, Pasolini já se apercebera que o cinismo do "novo homem" pode ser devastador. Por isso, a mensagem é dirigida às gerações que se arrastam, como zombies aprumados, sobre as ruínas invisíveis da Europa. Este relato da barbárie detém-se, poucos minutos depois de ter começado, neste gesto: "Viva a liberdade". É, ou deve ser, se se quer verdadeiro, um gesto (ou uma imagem) e não uma frase ou, muito menos, um slogan para estampar na camisola ou ostentar num cartaz.
Por ser um gesto tem de ir bem para lá da sua enunciação em palavras, isto é, para ser verdadeiro, para ser dito, o grito "viva a liberdade" tem de ser libertado deste e daquele modo - o modo das celebrações profundas. Este modo, o "como", é mais determinante do que o mero "dizer", o "ditar alto" ou o "repetir" por impulso (numa manifestação, por exemplo): "Viva a liberdade" só é o que quer dizer se for dito com o corpo todo, se for dito "sem guião", sem "cassete", se for dito do fundo, mais interior, da alma para se fazer ouvir, se aí chegar, além-mundo (o risco de, para lá dele, ninguém ouvir não é risco nenhum). Devemo-nos co-mover para que este "viva" nos ponha em acção, mesmo que os cínicos contra-ataquem com palavras actualmente tão desacreditadas - sintoma dos tempos... - como "ingenuidade" ou "amadorismo".
Narrador em off: Se não se grita "viva a liberdade" humildemente, não se grita "viva a liberdade". Se não se grita "viva a liberdade" a rir, não se grita "viva a liberdade". Se não se grita "viva a liberdade" com amor, não se grita "viva a liberdade". / Vós, filhos dos filhos, gritam com desprezo, com raiva, com ódio: "E viva a liberdade". Portanto, não gritem "E viva a liberdade". E isto vós, filhos dos filhos, sabem que gritam com desprezo, com raiva, com ódio.
(Da mesma forma pergunto: quantas pessoas do cinema, que vivem dele, que fazem dele o seu "ofício", que se dizem cheias de princípios, conseguiriam frasear "viva o cinema" sem um pingo de desprezo ou sobranceiro sarcasmo?)
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