quarta-feira, 7 de setembro de 2011

The Ward (2011) de John Carpenter (I)

Várias coisas devem ser ditas sobre "The Ward" para que dele não resulte mais um equívoco de que o seu realizador, John Carpenter, é totalmente alheio; para que, enfim, este não volte a fechar-se na sua toca em LA a ver mais jogos dos Lakers do que filmes de Hawks; para que, de novo, depois da incompreensão que rodeou os seus dois últimos filmes, não nos precipitemos em "catalogações vãs" - dirijo-me aqui aos seguidores de um cinema que não só é de fácil fidelização como se tem mantido fiel, muitas vezes contra o mundo, aos seus princípios estéticos e temáticos. Proponho, assim, que entremos em "The Ward", primeira longa de Carpenter em 10 anos, para mais uma sessão terapêutica de desintoxicação do cinema actual, aquele que nos grita "mensagens feitas", que, por vezes, apenas se consegue agarrar à citação, pondo a pata permanentemente no jardim do vizinho sem que a este tenha pedido autorização.

"The Ward" é um filme que sabe onde está e para o que veio. Não vive de truques sem ser do grande truque de que todo o cinema é feito: manipulação de expectativas através de uma "modelação" estética feita a partir do eixo tempo-espaço. Ora, Carpenter parte para "The Ward" para fazer um filme de terror e, para ele, leva as suas armas - armas que se gastaram com o passar dos tempos, fruto das tais "invasões abusivas" em território alheio? Algumas, talvez, mas, como disse, entramos neste filme cientes do seu poder soberano dentro dos princípios que enformam hoje o género do terror - creio, aliás, que um "Halloween" é hoje tão "filme de terror" ou "slasher movie" quanto "Nosferatu" será um "vampire flick" ou, heresia!, qualquer coisa equiparável a um dos filmes da saga "Twilight". Mas, retomando o nosso fio de raciocínio, digo o seguinte: Carpenter faz "The Ward" seguindo, ponto a ponto, as coordenadas temáticas e estilísticas do seu cinema, mais até, do "cinema" que fez nos anos 70/80 bem como do "cinema" que nos trouxe com os seus dois últimos filmes. Afinal, 1 + 1 é igual a 1.

A coerência de "The Ward" também reside num casamento bem celebrado entre o Carpenter de "Halloween" e o Carpenter de "Ghosts of Mars", e com o Carpenter que lhes está de permeio, sobretudo, o de "In the Mouth of Madness" e "Prince of Darkness". Com efeito, este "Carpenter revisto por Carpenter" mostra, na realidade, (como o fim do filme que aqui tratamos), que estamos na presença de um universo uno, que, desse modo - uno -, tem sobrevivido à passagem do tempo. As inquietações e as "modelações" formais que o caracterizam pouco ou nada mudaram; na realidade, estas apenas têm sofrido ligeiras "correcções plásticas", feitas casuisticamente seguindo as variações que se operam de cenário para cenário, de história para história, de personagem para personagem. Penso que "The Ward" ajuda-nos a consolidar a ideia de que definitivamente Carpenter integra aquele grupo excepcional de cineastas (como Hawks ou Hitchcock) que, tendo criado um universo autoral uno, mas diverso, se renova - e renova todo o cinema - a cada filme que realiza - os filmes mudam pouco, mas o mundo, esse, muda ainda menos. É desta ideia que também vem a filiação sempre-política de Carpenter.

"The Ward"

"Ghosts of Mars"

E, perguntar-me-ão todos aqueles que atribuíram a "The Ward" o estatuto de "filme menor" ou primeira obra "despersonalizada" de Carpenter, o que faz de "The Ward" um filme genuinamente carpenteriano? A minha resposta é a seguinte: TUDO. Comecemos pelo "dispositivo" narrativo: história espacialmente concentrada num local isolado - um hospício - mas que se estica, temporalmente, na cabeça das suas personagens, em visões induzidas pela sua perturbação psíquica e, provavelmente, por todas as drogas e choques eléctricos que lhes são administrados como "terapia" - mas o que é "causa" e "efeito" aqui?

A dúvida marca, desde logo, o filme, isto é, num território bem demarcado - o tal hospício - nasce um novo território - puramente mental - onde a divisória "natural" entre "ilusão" e "realidade" se esbate até ao ponto em que se torna indistinta. "Ghosts of Mars", como demonstrei numa análise que fiz recentemente para o ciclo de cinema Década dos Zeros, vive precisamente desta "perturbação alucinatória", que é uma perturbação temporal e espacial. Claro que o eixo temporal não é trabalhado com o mesmo grau de complexidade que "Ghosts of Mars", mas, de qualquer modo, em "The Ward" também detectamos uma urdidura feita de flashes que, ora nos remetem para um passado bem identificado (a casa em chamas), ora para um tempo incógnito (a rapariga amarrada na cave e o vulto que se aproxima...).

Por outro lado, estes dois "tempos" subsistem num tempo "presente" que é um passado - já que estamos em 1966, como Carpenter não deixa de sublinhar pela indumentária, pelos utensílios dos médicos, os seus métodos "datados" e, claro, pela música e programas de TV que surgem como que a "comentar", com ironia, o que se vai passando. Em "Ghosts of Mars" também estávamos num futuro mais ou menos incerto, que se mostrava pouco relevante para a construção, digamos, espacial ou material do filme, já que, como fiz notar nessa análise, este é um filme que se podia facilmente equiparar a um western clássico de Hawks. "The Ward" é tanto um "filme de época" como "Ghosts of Mars", com a diferença que este último é um "filme de época" no futuro, e o primeiro é um "filme de época" no passado - solução claramente menos inventiva, que, à luz da anterior obra-prima de Carpenter, penaliza "The Ward".

Contudo, ao mesmo tempo, como já deixei implícito, "The Ward" vai-se tecendo entre um espaço puramente mental - expansivo e inconstante - e um espaço material - concentrado, cerrado e labiríntico. É, nesse sentido, uma releitura do filme de cerco mais extrema que "Ghosts...", já que este último, ainda assim, se dispersa fisicamente mais que "The Ward", onde a psicose é a única coisa que liga as suas partes disjuntas - progressivamente, o espaço mental revela-se tão labiríntico quanto o espaço concreto, e este último vai-se abrindo ao plano de fuga, "expansivo" mas também algo "intermitente", das personagens.

"The Ward"

"In the Mouth of Madness"

Estamos no intervalo entre "In the Mouth of Madness" e "Prince of Darkness" - a mente a puxar para a prisão da psique humana e o espaço a gritar por um "plano de fuga". O que provoca, naturalmente, estas duas dimensões são as fantasmagorias, que também reconhecemos nesses filmes do realizador de "Halloween". Aliás, as fantasmagorias, que durante quase todo o filme parecem "pertencer" ao espaço concreto, vão-se configurando como "realidades mentais" da(s) personagem/personagens. A ameaça gera-se no interior do homem. Nada mudou aqui, se formos ver ou rever boa parte da obra de Carpenter.

"The Ward"

"Halloween"

"The Ward" é tanto um filme de fantasmagorias como o era "Ghosts...", ou seja, tem pouco ou nada a ver com, precisamente, "filmes de fantasmagorias"; estruturam-se, antes, em construções espacio-temporais alucinogénicas que transportam o espectador entre realidades até à abstracção pura das imagens - potência que só o cinema possui, e que só Carpenter insiste em explorar... ou talvez apenas acompanhado, presentemente, por realizadores como Bryan Bertino ("The Strangers") ou Shyamalan ("The Village"). Formalmente, Carpenter mantém-se firme numa arquitectura visual que se revela tão intricanda quanto mais intensos são os ataques psicóticos das personagens, ou quanto mais regulares são as injecções de drogas misteriosas e os potentes choques eléctricos administrados pelos enfermeiros.

As imagens de portas entreabertas, leitmotifs visuais nossos conhecidos em "Ghosts of Mars", convertem-se em passagens assustadoras que se abrem a um inconsciente transbordante, ao passo que a visibilidade/invisibilidade da ameaça supranatural vai pairando sobre a textura das imagens como as sobreimpressões (dissolves que se arrastam mais do que o normal...ou efeitos-fantasma sobre o corpo dorido depois de uma "noite pesada") dos dois tempos que a assombram desde o primeiro instante - passado identificado e tempo incógnito.

O tecido temporal é fabricado como nos melhores filmes de Carpenter. Para além das várias pontes possíveis que se podem estabelecer com "Ghosts...", importa destacar a forma como o "fantasma" - que claramente habita aquele espaço... - vai aparecendo e desaparecendo, segundo o ritmo cardíaco da protagonista, que tenta fugir dos guardas. O corpo vaporoso e abstracto de Alice vai ganhando substância um pouco como o de Myers ao longo de "Halloween"; ou do bicharoco de "The Thing" ou, mais ainda, dos fantasmas em "Ghosts...". A sua metamorfose é alimentada pela luta humana, aliás, de homens contra homens - estamos aqui em Hawks, estamos aqui em Carpenter... de novo.

"The Ward"

O conflito "corporiza" o fantasma, que nos aparece inicialmente numa cena sensualmente embalada pelo excelente tema principal do filme: durante o banho de chuveiro das raparigas, corpos perfeitos são filmados em plano médio e com total "desprendimento", qual western softcore. (Um parêntesis: aquela iluminação de raios de luz entrecortados, logo a seguir à cena do duche, lembra, até ao mais esquecido, que não está a ver um filme de um realizador qualquer...) As sobreimpressões multiplicam-se até que surge, pela primeira vez, num jogo de flashes entre o visível e o visível, a figura de Alice. Ora, aqui estamos na primeira etapa de solidicação da ameaça "externa", que vai vivendo, vai-se "corporizando", à medida que se intensifica o conflito entre as raparigas em cativeiro e quem as mantém em cativeiro. Até que, no final - spoiler alert -, o fantasma ganha corpo de gente, sangra e é defenestrado devido à força do corpo de Kristen.

"Halloween"

Carpenter desenvolve como um "regime de crescimento" entre ameaças que, a meu ver, nunca foi tão aprimorado. Por outro lado, apesar de não ser tão genial como em "Halloween", também a dinâmica entre plano subjectivo versus plano objectivo é mantida, nomeadamente, nas investidas que a câmara vai fazendo pelos corredores, ora totalmente vazios, ora não totalmente vazios, do hospício. A certa altura, temos uma conjugação do melhor "de dois mundos": Kristen entra no armário da morgue, para se esconder dos guardas do hospício; por trás de si, uma mão aproxima-se do seu ombro, para lhe tocar... Mas, numa espécie de falso-raccord próximo daqueles que povoam brilhantemente "The Strangers" ou, recuando na história do cinema, também detectável em "Night of the Demon" de Tourneur, de repente a mão desaparece de campo - não sai, desaparece. Ora, aqui Kristen é ameaçada "de frente" e "pelas costas". O seu encurralmento é, contudo, mental, já que nunca chegamos a ver o corpo por inteiro ou indícios sequer dos que a ameaçam. A imagem da personagem de Amber Heard no armário replica, obviamente, a cena em que Jamie Lee Curtis tem o mesmo gesto para escapar "ao campo de visão" de Myers, leia-se, ao "campo de visão da câmara".

De qualquer modo, a dualidade formal acompanha a dualidade estilhaçada da narrativa - que surge representada, no genérico, e, na recta final do filme, pelos fragmentos de vidro à "Spider". O vidro e o espelho, aliás, são os dois principais leitmotifs do filme, o que numa obra sobre a loucura poderá parecer um cliché "necessário", mas até aqui penso que Carpenter vai além da óbvia simbologia. Na última cena do filme - spoiler alert: mais um sad open ending de Carpenter - Carpenter faz uma releitura da antológica sequência final de "Prince of Darkness". O que vive no outro lado do espelho? Já tínhamos visto, numa das mortes do filme, que o reflexo chama "a morte", mas, mesmo mesmo no último instante, Carpenter prega a partida de ser o mais literal possível, como que dizendo-nos: "pois sim, está bem, mas a ameaça não vive propriamente no espelho, mas por trás dele. Por trás dele, onde ele é opaco. Experimente aí abrir o armário espelhado para tirar a pasta de dentes. Para branquear o sorriso. Experimente fazer isso... se for a tempo..."

(continua)

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