quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

High Sierra (1941) de Raoul Walsh


Percebo o que quer dizer Jacques Lourcelles, no seu Dicionário do Cinema, quando conclui que o herói de "High Sierra" se inscreve mal no filão walshiano, porque lhe falta a desmesura, a monstruosidade e o aspecto picaresco ou a "passividade trágica" que são marcas indissolúveis das melhores personagens do realizador norte-americano. Para quem - como eu - tinha visto antes "Pursued", parece-me evidente tudo isto, contudo, pensando mais fundo - e percebendo onde quer chegar Lourcelles, isto é, ao "fraco argumento" de Huston, autor detestado por boa parte da crítica francesa - devo dizer que concordo na mesma medida em que discordo com essa ideia: aqui, Humphrey Bogart - actor cujo carisma, por acaso, só saltará à vista com Huston e Hawks - é demasiado altruista, demasiado "mole" e auto-comiserante para ser identificável com o tipo de homem walshiano, mas também é preciso dizer que a passividade trágica está lá, que esse altruísmo e moleza são, à sua maneira, quase patéticos.

Parece que ficamos reduzidos ao grau de fraqueza do herói masculino, porque, entendamos, os homens walshianos estão longe da planura viril de um Huston, por exemplo. Logo, só posso concluir que, apesar de tudo, Humphrey "Mad Dog Earl" Bogart está investido do olhar, do "olho singular" apetece escrever, de Raoul Walsh - menos que num "Pursued", apesar daqui também termos uma personagem "perseguida" pelo seu passado, menos que num "Desperate Journey", apesar de aqui também termos a história de uma viagem, de uma fuga a qualquer "reconhecimento", menos que num "They Drive By Night", mas também aqui Bogart lida com uma mutilação. É sobre esta mutilação que importa parar um pouco: no filme anterior que realizou com Walsh, também com Ida Lupino no elenco, Bogart era o "homem sacrificado", esta figura é cara a Walsh, bastando-nos para isso recordar o desfecho trágico de Cagney em "White Heat" ou "The Roaring Twenties", ou de Flynn no início e no fim de "Uncertain Glory" ou de Edward G. Robinson em "Manpower", etc. O sacrifício de Bogart nesse filme não se consubstanciava na sua morte física, mas numa espécie de morte mais embaraçante: uma morte fílmica. A personagem, após o acidente que lhe roubou um braço, quase desaparece de cena, esta negligência castigadora, implacável, volta a acontecer em "High Sierra", mas de forma significativamente distinta, porque o embaraçado continua em cena e é, precisamente, o herói.

Em "High Sierra", Bogart procura "arranjar" (fix) o pé defeituoso de uma rapariga com a qual se enamora. E, de facto, avança com o dinheiro para uma operação que acaba por ser bem sucedida. Bogart, que no filme anterior ficava sem braço, dá um pé à mulher que ama. É um gesto altruísta, talvez demasiado "caridoso" para um infame e cruel ladrão de bancos recentemente indultado de uma pena de prisão para a vida... À partida, não é um gesto muito walshiano, também porque significa uma acção, uma boa acção cristã, de ajuda a certa pobre casal de agricultores incapaz de pagar uma simples operação que restitua em pleno a feminilidade da sua bela filha. Bem, será, mas só aparentemente, porque, como se perceberá - mas nunca é assumido o "cinismo" dele, por inteiro - , Bogart procura uma recompensa: dá um pé e, em troca, almeja "a mão" da rapariga. Acaba por ser muito walshiana a forma como esta ingénua e doce menina dá a volta ao texto e anuncia que não ama Bogart, até porque o seu coração pertence há muito a outro homem. Dá vontade de dizer que a doce e inocente menina "dá-lhe com os pés".

Este lado dúplice, mas silenciosamente programático, das personagens femininas walshianas estava presente em muitos outros filmes, mas aqui arrasa por completo o coração do nosso herói. O que acontece nos filmes de Walsh é que o homem é um lobo solitário que na travessia, física ou puramente moral, que enfrenta está sempre sujeito a acidentes, o primeiro desses acidentes (que muitas vezes é um "bom acidente") pode ser uma mulher, mas aqui esta é mais que um mero acidente: é o primeiro "fim" daquela personagem, do seu "man power". Bogart não é desmesurado, até é modesto nas suas ambições, também se revela muito menos egotista que outros heróis walshianos, o que se passa é que também é frágil e feminino como tantos outros. Não sendo nada próximo de uma obra-prima - estamos de acordo com Lourcelles -, "High Sierra" acaba por ser bem sucedido a situar, isto é, a relativizar a figura do herói na obra de Walsh.

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