sexta-feira, 12 de julho de 2013

After Earth (2013) de M. Night Shyamalan


Há duas maneiras de ver "After Earth". Posso dizer que é um blockbuster multimilionário que serve de veículo ao pai e filho Smith (Will e Jaden, respectivamente). Posso também dizer que é uma louca tentativa de reduzir um blockbuster pipoqueiro a uma história caseira sobre a relação entre um pai e um filho, por sinal, interpretados pelo pai e pelo filho Smith. Não me parece, de modo algum, que esta visão alternativa do que é "After Earth" traia minimamente o risco associado a este projecto, risco esse que me parece evidente. É aqui que queria chegar quando falei das maneiras de "sair" deste filme, o "aftermath" do depois deste regresso à Terra... Na realidade, também podemos dizer que este é um filme "desmiolado" de aventuras e mais ou menos espampanantes efeitos especiais, mas o que resta no fim é o projecto de contar uma fábula moderna (ou primitiva?) sobre as dores do crescimento e o domínio do medo.

Ao contrário de boa parte dos blockbusters contemporâneos, mesmo alguns bem fabricados por um Spielberg, um Cameron ou (muito mais limitado) um JJ Abrams, aqui a dimensão íntima das personagens não é o "valor acrescentado" ao espectáculo sónico e visual, mas antes, bem pelo contrário, a matéria essencial que é trabalhada incessantemente, do primeiro ao último minuto, quase até ao paroxismo. Isto como se "After Earth" fosse um filme de ficção científica onde a acção é gerada por uma engenharia sentimental muito antes de ser induzida por uma bateria de efeitos CGI. O continente é aqui, nitidamente, o aparato tecnológico; o conteúdo são, por sua vez, as relações humanas. Ao aparato tecnológico é dado o papel que, por natureza (e usar a palavra natureza não é acidental), lhe é destinado: o de medium, tanto de ligação/aproximação como de corte/distanciação. 


Este é um dos pontos mais notáveis - e arriscados, de novo sublinho - deste filme: um problema de comunicação entre pai e filho, não excessivamente melodramatizado, que alimenta todo um monumental empreendimento hollywoodesco, de grande ou muito grande escala (afinal, o filme custou 130 milhões de dólares). Essa "falta" de comunicação é reparada por um processo dialéctico entre campo e contra-campo que, de novo para surpresa do espectador moderno, se potencia única e exclusivamente na mais antiga plataforma do cinema: a mise en scène, isto é, a posição relativa da personagem no seu meio e na relação com essa outra personagem, ubíqua, omnisciente e inevitável, chamada câmara de filmar.

Entre a câmara e a personagem normalmente vemos hologramas, gráficos, uma parede translúcida de informação que torna possível uma ligação transfísica entre um pai paralisado nas duas pernas e um filho que corre veloz, superando o seu medo de nunca vir a ser um Ranger, isto é, de nunca vir a merecer o amor e o orgulho do seu pai. Essa membrana de informação permite ao pai assistir (a)o filho, colocando o primeiro na pele do primeiro espectador de "After Earth" e o segundo na pele de primeiro realizador de "After Earth". O pai vê, assiste, orienta e orienta-se (a certa altura, deixa mesmo de poder contactar com o filho, ficando assim entregue à sua condição passiva, já não só física como virtual). O filho regista a sua aventura, qual travelogue frenético, rodado na primeira pessoa, sobre esse planeta estranho chamado... Terra. 

A viagem mapeada (pelo pai) é efectivada pelo corpo-câmara (do filho), num jogo simbiótico entre campo e contra-campo. A comunicação entre os dois é uma comunicação com um ausente e todo o filme será uma construção de algo "na ausência de". Citar Oudart e a figura psicanalítica da "sutura" não seria despropositado se pensarmos que todo este filme sobre a comunicação entre pai e filho, que não existia "antes" e, atenção, não fica claro que exista "depois"..., é todo ele fabricado por uma distância: aquela que todos os media, começando nas telecomunicação e acabando no cinema, produzem nas relações sócio-afectivas entre humanos. Ao espectador cabe "reparar" a falha e, numa montagem alternada absolutamente clássica/griffithiana, saber entrelaçar os fios desta história, tão simultaneamente básica (imediata) como complexa (mediata). 


A ideia de que a criança precisa de sair da redoma é, num primeiro nível, o típico obstáculo shyamaliano que o protagonista, perseguido por um evento traumático, tem de superar para despertar em si o dom que lhe está ou deve estar reservado. Mel Gibson em "Signs" precisa de superar o trauma da morte da mulher para poder reactivar a sua fé em Deus (o seu dom), tal como Paul Giamatti  em "Lady in the Water" precisa de "tirar do peito" a dor imensa que sente pela morte da sua família para (re)activar a crença no mundo e na vida (o seu dom é essa crença, essa capacidade de "acreditar"). O que se passa em "After Earth" é quase uma reconfiguração abstracta desta ideia de dom, porque o nosso herói precisa de ultrapassar o trauma da morte da irmã, reconquistando a confiança, o amor e o orgulho do seu pai, para, enfim, ver em si despertada a capacidade de... desaparecer (ghosting). 

Este desejo, melhor dizendo, esta "ambição" de desaparecer que move o filho significa, num primeiro nível, tornar-se invisível aos olhos dos monstros alienígenas, Ursa, que o seu pai combate galhardamente. Num segundo nível - há níveis aqui, de facto, quase como um videojogo estilístico e... moral - , ele eventualmente deseja tornar-se invísivel (um "fantasma") para se reencontrar com a irmã (e parte do desejo se cumprirá numa sequência pejada de duplos sentidos semânticos) e, também ou acima de tudo, para se aproximar do pai. Como o filho "deixa escapar" a certa altura, o pai é um "cobarde" porque nunca "esteve lá". O pai foi, é e poderá continuar a ser - o happy ending não é definitivo nisto - também ele um ghost, não só invisível às criaturas mas, acima de tudo, intangível (= um ecrã) para a sua família. Ver e tocar: o pai assiste à vida, o filho implica-se, embrenha-se, envolve-se, toca e deixa-se tocar por ela. O verdadeiro aventureiro - o verdadeiro "herói", apetece dizer - é o filho, não por ter conseguido "desaparecer" no fim e matar o monstro, mas por ter estado onde o pai nunca esteve: junto de quem ama.

O Ricardo Vieira Lisboa é bastante perspicaz a isolar um momento no filme, que me parece resumir quase tudo o que escrevi até agora. Num dos flashbacks - como "Signs" ou "The Last Airbender", "After Earth" é, para além de um montagem alternada "no presente", um encadeado de remissões ao passado - o pai festeja os anos da filha através de uma ligação online, à distância, enquanto viaja para mais um local de combate. No ecrã do seu Ipad pós-terráqueo, gadget curiosamente de forma e textura orgânicas - como é, aliás, todo o décor futurista do interior das naves -, a personagem de Will Smith assiste, qual espectador passivo, ao típico ritual em torno do bolo de anos. Quando mulher e filha o convencem a soprar as velas, o incrédulo e atrapalhado pai sopra para o ecrã. E, milagre!, as velas apagam-se. Milagre? Nem tanto: do fora de campo, nas costas da câmara, sai o filho como que apanhando em falso o pai ausente, que, talvez por segundos, acreditara ter milagrosamente "activado" a sua participação no quadro familiar. Aqui temos, num curto episódio, uma exploração altamente imaginativa do fora de campo e do campo/contra-campo, dois velhos recursos fílmicos usados como símbolos da ausência insanável de um homem entre aqueles que ama e entre aqueles que o amam.


"After Earth" não se fica por aqui nos seus jogos mais ou menos subtis (por vezes, básicos, por vezes, desinspirados, por vezes, ágeis, por vezes, tocantes) com o vector espaço-tempo, um vector altamente mediatizado ou, pelo menos, sempre mais mediato que imediato (salvo talvez no abraço final). O "after" do título é todo um outro programa que torna esta fábula íntima sobre a paternidade e o crescimento, sobre o medo que os envolve, num dos poucos filmes futuristas genuinamente primitivos da história do cinema - algo próximo só encontro em "Planet of the Apes" e, genialmente, em "Ghosts of Mars". O "futuro" que aqui se põe em cena é um "futuro" que nos leva mais para trás do que para a frente: quanto mais a viagem se aprofunda, mais aquela terra nos parece com... a nossa Terra (afinal, os macacos e os tigres não são metamorfoseados em criaturas tenebrosas, como acontece em "Lady in the Water"; são apenas macacos e tigres!). 

A ideia primitiva de mapa funde-se, a certa altura, com um "remake" do traço da pintura rupestre (o mesmo traço que abre "Lady in the Water", por sinal...), como se, de repente, estes dois espécimes humanos "do futuro" mais não estivessem que a recomeçar a História numa Terra renascida das cinzas da incúria e dos abusos humanos cometidos no passado. Este overlapping transhistórico entre o passado e o futuro (o pai chega a afirmar que ter medo é "ter receio do futuro") será a primeira reconciliação, a primeira ligação significativa antes do abraço final "não mediado", convergência táctil "patética", entre pai e filho. "After Earth" não fala de super-heróis (aliás, o heroísmo é aqui terrivelmente terreno), não se verga ao CGI e aos enredos de apenas "supostas" densidades psicológicas de um Nolan. O que importa em "After Earth" é o traçar um arco sentimental, que, pondo em diálogo passado e presente, permita ao espectador - este filme é dele, como já ficou claro! - construir a narrativa dessa ponte desfeita que liga um pai ausente a um filho "emotivo". História universal, quer dizer, intemporal e, porque ainda estamos "after earth", definitivamente interritorial.  

(Convido o Ricardo Vieira Lisboa a publicar - aqui ou no seu blogue - o seu mosaico de imagens, engenharia "sentimental" que põe, lado a lado, "Bigger Than Life" de Nicholas Ray e este "After Earth". Iluminar-nos-ia bons e ousados caminhos, se o fizesse.)

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