sexta-feira, 19 de abril de 2013

Paradies: Liebe (2012) de Ulrich Seidl


Podemos plantar um girassol numa lixeira, fazer um enquadramento academicamente rigoroso com o centro no objecto que irradia a beleza pura e relegar a lixeira para o background - o amarelo luminoso da flor irá "pictorializar" o cenário. Não se pode dizer que "Paradise: Love" "funcione" tal e qual, mas é muitas vezes evidente - e apanhado em falso - no seu esquematismo formal, na sua intenção programática de criar algo a partir de sucessivos efeitos-choque. Eu posso filmar uma mulher na casa dos cinquenta, ignorada pela filha teenager que cuida na ausência de uma figura paterna, que programa umas escapadelas no Verão para um resort de luxo no Quénia, onde encontra paz de espírito e algum reconforto no seio das suas amigas. Elas, mulher e amigas, podem gostar de se soltar mais um bocadinho na companhia de um "acompanhante" negro e eu posso filmar isso como consequência mais ou menos natural da vida que levam lá, na distante e triste Europa, ou como corolário, enfim, do seu "mau envelhecimento". Todavia, o que Seidl busca não é - não pode ser! - uma reflexão sobre a solidão ou o envelhecimento, nem tão-pouco aprofunda esse mal-être europeu ou quer entender o "Amor" que tem no (sub)título. Muito pelo contrário, sempre com a câmara apontada para o tal "girassol (plantado por si) na lixeira", Seidl delicia-se com a permanente perversão de todas estas - ou de todas "as" - ideias; logo, o que verdadeiramente ele acaba por filmar é o seu próprio gesto maquinador ou interesseiro.

A protagonista deste filme, Teresa, vai para o Quénia para encontrar - imagine-se! - não "carne fácil", um éden onde possa "fazer esquecer" o seu corpo estragado pelo tempo, mas sim amor ou, mais concretamente, um "homem que possa olhar nos olhos". O primeiro choque deste primeiro tomo dedicado a "paraísos perdidos", empreendimento de peso (se calhar, de betão...) que Seidl lançou no espaço de pouco mais de um ano, é facilmente localizável aqui ou mesmo um pouco antes, quando fica evidente que Teresa é muito diferente da sua amiga "debochada". Seidl apresenta-nos, então, uma senhora cheia de (falso) pudor, auto-consciente da idade e do corpo, que viaja até ao Quénia para encontrar um africano jovem e atlético que olhe para ela para lá dos efeitos mais visíveis da idade - estranho que não se preocupe ela em olhar para lá da idade daquele, mas... enfim, estamos em África, tudo vale! Não sabemos quem quer mais iludir a sua situação, se a amiga descarada que paga para ter sexo, se a nossa protagonista que não se parece dar bem com as "maneiras" dessa economia. Este é o primeiro choque do filme e é habilmente explorado, pelo menos, até ao ponto - ainda assim, algo óbvio - em que Teresa bate com o nariz na porta, após ser morosamente arrastada por uma relação que só podia ser autêntica numa cabeça fantasiosa e auto-iludida.

O choque moral também é um choque entre corpos. De um lado, os corpos pálidos e descaídos de cinquentonas com cio, do outro, os de jovens na "flor da idade" que se prostituem nas margens daquele hotel luxuoso totalmente separado do exterior - chegam mesmo a dizer qualquer coisa como "bem-vindo a África" quando Teresa passa a corda que separa o hotel da praia. A partir do momento em que os corpos se misturam uns com os outros, a câmara de Seidl não cessa de procurar - o verbo correcto é, na realidade, "provocar" - mais pontos de choque. Composições geométricas, imediatamente chamativas, fazem-nos sempre alternar (às vezes dentro do mesmo quadro) entre o luxo e o lixo, entre o feio sofisticado e o belo mais deslavado, tal como, de um ponto de vista dramático, a posição das personagens está sempre algures entre a agressão passiva e a vitimização violenta. Há uma espécie de chantagem calculada - demasiado visível - no esquema narrativo e moral: Teresa não quer descer ao nível da amiga até ao ponto em que acaba por descer mais baixo; Teresa vai até certo ponto no caso com Madunga, para depois cair com estrondo em si; Teresa é esquecida pela filha no seu dia de anos, sente-se destroçada, até ao momento em que - surpresa! - uma festa debochada lhe bate à porta. Lamentavelmente, caro Seidl, as costuras - como as banhas - estão todas à mostra aqui.

Perto do fim, já desconfiamos que em momento algum Teresa é/foi uma pessoa (se calhar é uma caricatura) ou uma pessoa com "sentido de dignidade" (se calhar é uma marioneta num teatro alienante), mas, apesar disso, a câmara de Seidl acompanha-a com compaixão - o comiserante plano final é eloquente, deste ponto de vista. Ao mesmo tempo, Seidl reduz os corpos dos homens africanos ora a objectos de uma performance degradante, ora a agentes de um esquema rasteiro onde se trocam "sentimentos" por dinheiro. No próprio título do filme, o realizador austríaco, quiçá simpatizante da "religião Haneke", procura vender uma coisa (amor... romântico) para nos dar outra em troca (sexo... cru, morto, sem alma), sendo que toda a economia visual e dramática deste "Paradise: Love" se baseia numa concepção apocalíptica da humanidade, numa exploração sem filtros - esta será a única constante que denuncia o tal "esquematismo" calculado - do lado mais indigno, quando não repulsivo ou simplesmente baixo, das suas personagens, a começar pelos sempre-dissimulados e mal agradecidos africanos e a acabar (menos implacavelmente) nas decadentes velhas ricas da Europa ou nas velhas ricas da Europa decadente (nota política que acaba por se diluir, e por se frustrar em toda a linha, no discurso ideologicamente dúbio de todo o filme). Apesar de tudo isto, marcarei presença, como acordado, nas passagens de "Paradise: Faith" e de "Paradise: Hope". Pode ser que esteja enganado...

("Paradise: Love" passou hoje, dia 18, na secção Observatório. Volta a ser exibido no dia 25, próxima quinta-feira, na Culturgest, às 21h30. Sem prejuízo de se encontrarem outras valias no que resta da trilogia - e obra - de Ulrich Seidl, escrevo eu que pelo menos este primeiro tomo não deve estar, de modo algum, no topo das suas prioridades festivaleiras.)

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