Este diálogo recortado de "36 vues du Pic Saint Loup" (2009) não é diálogo nenhum: Kate, personagem interpretada por Jane Birkin, fala consigo mesma, lamentando o facto de, há 15 anos, ter "fugido" do circo onde trabalhava, onde morava, onde amou e viu morrer tragicamente o objecto desse amor, ali, na arena colorida.
A imagem é poderosa, já que sugere, retoricamente, a figura de um "hit and run existencial": Kate abandonou "os seus" quando estes mais precisavam dela, pouco depois de ter tido lugar o "crime" que fez desaparecer para sempre o homem que amava - morte sobre a qual a sua consciência reclama "direitos de autor". O crime do hit and run não acontece, portanto, só com carros. Com eles, de qualquer modo, o crime pode não estar no hit (se este for puramente acidental), mas apenas no run (é a fuga que converte a inocência numa assunção cobarde de culpa).
O filme de Rivette traça a genealogia de um castigo com uma natureza circular, viciada, bloqueada, "às voltas" sobre si mesma; enfim, um problema rotundo. Partir e regressar, dois gestos que decalcam, não retorica mas visualmente, o circulo da arena colorida (do circo) onde Kate não quer entrar, mas que é incentivada a isso por Vittorio, o homem providencial que vive ou em "fuga" ou, simplesmente, em movimento, ele que está ali para resolver "avarias", mecânicas e sentimentais: cure and run é a solução que encontra para uma fuga sem culpa dessa rotunda chamada Kate.
Kate: (...) Fui uma criminosa. Não o ultrapassei. O meu castigo foi ter partido... O meu castigo é regressar... (...)
terça-feira, 26 de junho de 2012
segunda-feira, 18 de junho de 2012
Consequências físicas do acto de filmar
Buster Keaton e Edward Sedgwick, "The Cameraman" (1928)
Aqui está o melhor operador de câmara do mundo (...). Ele não respire durante 10 minutos: nós matamo-lo, para depois o ressuscitarmos mais tarde. Quando seguramos numa câmara de mão, não podemos respirar (...): se respirarmos, a câmara treme.
John Cassavetes sobre George Sims (operador de câmara), em "Cinéastes de notre temps: John Cassavetes" (1968) de André S. Labarthe e Hubert Knapp
Aqui está o melhor operador de câmara do mundo (...). Ele não respire durante 10 minutos: nós matamo-lo, para depois o ressuscitarmos mais tarde. Quando seguramos numa câmara de mão, não podemos respirar (...): se respirarmos, a câmara treme.
John Cassavetes sobre George Sims (operador de câmara), em "Cinéastes de notre temps: John Cassavetes" (1968) de André S. Labarthe e Hubert Knapp
Há uns anos, Van der Kreuken disse-me algo que, então, me impressionou: "Ter que levar a câmara obriga-me a estar em forma. Tenho que manter um bom ritmo físico. A câmara é pesada, pelo menos, para mim. Pesa 11 quilos e meio, com uma bateria de 4 e meio. No total, 16 quilos. É um peso com o qual há que contar, e que faz com que os movimentos do aparelho não possam ter lugar gratuitamente. Cada movimento conta, pesa."
Serge Daney, «Vers le sud (De weg naar hetz zuiden, 1981) Johan Van der Kreuken», publicado no dia 2 de Março 1982 no Libération
Lembro-me que os actores tinham frio [dentro de água]. Mas eu não, porque a diferença entre actores e realizadores é que os actores sentem frio, mas o realizador, quando está mesmo concentrado, não se apercebe se a água está fria ou quente. Assim, consoante se sente frio ou calor, saberá se é mais um actor ou realizador.
É como distinguir se um filme é documental ou de ficção. Quando é o realizador, pesar-se-á depois [da rodagem]. Se perdeu peso, então isso significa que é um filme de ficção, porque tem de trabalhar com actores. Se ganhou peso, isso significa que é um documentário, porque não há muita coisa para fazer.
Lembro-me que os actores tinham frio [dentro de água]. Mas eu não, porque a diferença entre actores e realizadores é que os actores sentem frio, mas o realizador, quando está mesmo concentrado, não se apercebe se a água está fria ou quente. Assim, consoante se sente frio ou calor, saberá se é mais um actor ou realizador.
É como distinguir se um filme é documental ou de ficção. Quando é o realizador, pesar-se-á depois [da rodagem]. Se perdeu peso, então isso significa que é um filme de ficção, porque tem de trabalhar com actores. Se ganhou peso, isso significa que é um documentário, porque não há muita coisa para fazer.
Luc Moullet no cenário de "A Girl is a Gun" (1971), "L'homme des roubines" (2000) de Gerard Courant
sábado, 16 de junho de 2012
A Torinói ló/O Cavalo de Turim (2011) de Béla Tarr e Ágnes Hranitzky (IV)
(7) o "tempo fechado" sopra... Talvez por me estar fresca na memória, lembrei-me da primeira longa-metragem de Ermanno Olmi, provavelmente a sua obra mais interessante, intitulada "Il tempo si è fermato". O título é suficientemente sugestivo - todo um programa estético-filosófico que importa analisar - mas a semelhança com este filme de Tarr vai para lá dele: no filme de Olmi, um homem velho e um jovem "inexperiente" guardam uma barragem no Inverno, isolados do mundo... e, a certa altura, também isolados do "exterior" por uma tempestade de neve que assola a região. Os dois protegem-se na barraca de madeira, que range por todos os lados, que grita a cada chicotada de vento, neve e frio. O tempo aqui "encerra-se" naquele cubículo, mas que tempo? O tempo deles, das personagens, e o tempo do filme, nosso.
A ideia de "tempo fechado" também me parece estar plasmada na experiência de "O Cavalo de Turim", ideia que traduzo na imagem metafórica da ampulheta. Nenhuma ampulheta é filmada, mas podia, já que a sensação da matéria que se "esvai", que se "desmancha" - como já o referi atrás - e a própria ideia de "encerramento temporal" - ou, enfim, da própria ideia de tempo como matéria... - fundamentam filosoficamente esta obra-prima final de Tarr. Essa ampulheta invisível é "virada" sempre que pai e filha saem de casa para verificar o estado de saúde do cavalo, mas também aqui a esperança se desmancha sempre - e o filme mostra este esvaimento sem pingo de frustração, sem sinal condenatório, apenas como sintoma inelutável do mundo.
As personagens jogam com o tempo como mortos-vivos: depois de constatado que o estado débil do animal continua a não oferecer melhorias, recolhem aos aposentos - e Tarr deixa que o tempo se esvazie, lento, fechado entre aquelas quatro paredes, para as quais a janela é só a confirmação das razões para esse retiro forçado, essa contemplação do tempo, pelo tempo, sem fundo de esperança - Tarr haverá sempre de virar a ampulheta, mal o tempo ameace parar. As personagens estão ali, muitas vezes paradas, no mesmo sítio, mas o tempo não deixa de transcorrer, "degradando" na espera.
(8) transportam-se coisas na carroça... Quando o poço seca, o homem e a filha tentam "a fuga": colocam todos os bens na carroça e partem puxando a carroça com as mãos, com o cavalo ao lado, seguindo o passo dos homens. Este gesto é um dos momentos altos do filme, na medida em que o transforma, por momentos, numa inventariação de coisas, leia-se, numa inventariação de imagens. Coisas-imagens ou imagens-coisas que já conhecemos na sua função, na sua mobilidade e na sua imobilidade: a roupa, as batatas, a garrafa de Pálinka, etc. De repente, é como se as personagens ambicionassem transportar até às últimas forças dos seus braços todo o filme... numa carroça "sem cavalo".
Dir-se-á que elas, em desespero, procuram transportar o meio de transporte, entrando num vício tautológico (heresia ontológica!) impossível de resolver - daí o regresso. A viagem vai acabar onde começou, mas, de novo, Tarr não nos surpreende: o plano centrado na roda que gira antecipa o insucesso da "fuga" - as personagens "voltarão" ao ponto de partida, tornarão a repetir e a repetir-se. Esse plano devolve-nos - de novo, apetece dizer - ao filme, mas não só: também a câmara não se mexe, não sai de perto da casa, quando as personagens decidem "abandoná-la". Há também aqui uma ausência de fé, puramente formal, nessa aventura. De facto, essa viagem sem ou contra o medium estava fadada ao fracasso.
(9) a roda gira ao passo do homem... Como já vimos, tudo gira em "O Cavalo de Turim". As coisas, sempre "as mesmas coisas", repetem-se a cada novo dia, um pouco como o movimento dos planetas-homens nos primeiros minutos de "Werckmeister Harmonies". Esse movimento "de roda" - a roda..., imagem embrionária do cinema - está presente, desde logo, na música assombrosa de Mihâly Vig, o compositor de todos os filmes de Tarr, logo, em certa medida, também ele, aqui, em modo de "despedida" - não certamente tanto do cinema, mas, pelo menos, do cinema que o criou, o que já é muito. O tema principal é circular, "viciado", gira sobre si mesmo infindavelmente. É um ritmo circular, mas não alucinante, pelo contrário, há um peso na instrumentação que parece mimar os gestos arrastados do dia-a-dia dos protagonistas...
Nada mudará, também diz ela, sempre que reaparece no ecrã - o espectador perceberá que o encantamento das imagens é participado pela música de Vig e que, ambas, convergem nesse movimento pendular infindável, entre o acordar e o dormir, entre o vestir e o despir, entre estados de degradação, de aquisição, reaquisição da propriedade, começando pelo corpo e acabando no coche ou, na realidade, começando nos pratos circulares de madeira e acabando no cavalo, a personagem que se "desapossa" dos seus donos pela doença (uma depressão? A depressão do mundo, o desespero do mundo de Nietzsche, comoveu o bicho? Transferiu-se para ele? Há, como nos cavalos de Tarkovski, uma dimensão metafísica neste cavalo que recusa servir o transporte do Homem; que, sem freios, caminha, nobre e soberanamente, sobre as suas quatro patas.
(continua)
(continua)
Newsletter #16: Van Sant
Habitué nos tops de melhores do ano aqui pelo CINEdrio, Gus Van Sant é um dos mais inventivos cineastas norte-americanos da actualidade, colando-se, ou não, a obras do passado mais longínquo (o remake de "Psycho") ou mais recente (a homenagem a Tarr em "Gerry"), reciclando o storytelling mais clássico ("Milk") ou assimilando docemente o sopro indie americano ("Restless") ou ainda levando ao limite as formas cinematográficas com um arrojo experimental fascinante (a trilogia "Elephant"-"Paranoid Park"-"Last Days" ou os seus filmes iniciais, como "Mala Noche" ou "My Own Private Idaho"). O "próximo Van Sant" é sempre um mistério, apesar de ser sempre, também, a certeza de um regresso a si mesmo, a um cinema melancólico, mas sempre-inconformado, composto de imagens fortes e personagens "tocantes" (no sentido de comoventes e/ou eminentemente palpáveis/corpóreas).
É ele o nosso herói de Julho, mês em que a Newsletter, inspirando-se no lado "transformador" da estética de Van Sant, também muda de imagem, tornando-se mais leve, mais legível e mais completa. Não perca.
Em matéria de filmes, podemos já antecipar alguns nomes de peso nesta edição. Reencontre-se com alguns dos maiores clássicos da Sétima Arte, de Ophuls, Rossellini, Ford, Peckinpah, Siegel, Walsh, em edições restauradas e em Blu-ray! Revisite westerns de Hellman ou de Mann ou de Boetticher, faça matinées caseiras na companhia dos filmes série B de Roger Corman, tire da obscuridade os nomes de Farocki ou Rozier... Faça isto e muito mais, caso passe os olhos pela nossa Newsletter de face nova.
Veja, mas também leia. O quê? Por exemplo, a biografia de Ingmar Bergman - lançada há pouco tempo em Portugal -, o último livro de Rancière sobre cinema, duas obras com a assinatura de Eric Rohmer, últimos escritos de Kracauer recuperados na América, etc.
Espere também algumas novidades no conteúdo de algumas rubricas. Este mês, mês de "Sugestões de...", damos a ler as recomendações de Tiago Baptista, historiador do cinema e conservador da Cinemateca.
Se não subscreveu já, então deve fazê-lo agora, aqui.
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ERRATA Newsletter #15
Os links estão, contudo, correctos.
quinta-feira, 14 de junho de 2012
Terror pelo vazio de imagens, triunfo do "visual" jornalístico
In an old issue of CAHIERS DU CINEMA, ten years back, he [Godard] asked us to illustrate an interview with him by putting in big white spaces blocked out with lines and captioned "here, the usual photo." It was a way to say that in any case, photos serve to paste over a void, to decorate, to supply what I now call "the visual" - but not to show anything.
By leaving the space empty, he showed the possibility of not pasting over. Today I have the feeling that we've lost, that Godard has lost, and that the media - with the TV in the lead - forbid us to think : "Hmm, we're missing an image, let's leave that slot empty, let's wait to fill it." The fear of the void is so strong that it takes us over as well. The void is no longer a dialectical moment between two fulls, it's what you must "make them forget."
Serge Daney, «Before and After the Image», publicado em 1991 na Revue des Etudes Palestiniennes, retirado daqui
(A questão mais premente nos estudos de jornalismo e ciências da comunicação, mas que nem por isso é dissecada como deveria nalgumas faculdades da especialidade.)
Recorte de falas (XXII): The Core
Filme-catástrofe de Jon Amiel que custou metade de um Roland Emmerich normal e que consegue ir mais ao "core" do género do que este alguma vez sequer tentou, "The Core" (2003) começa com alguns apontamentos cinéfilos interessantes - um remake de "The Birds" em Trafalgar Square, por exemplo - mas, sobretudo, sabe "lançar" as suas personagens, elas que são pessoas muito mais down to earth do que "transcendências de heroísmo" como nos filmes do outro senhor acima citado. E sabe lançá-las muito por mérito da rapidez com que o diálogo as "contextualiza", profissional e sentimentalmente. O excerto que se segue é exemplo, aliás, de como se pode matar dois coelhos com uma só cajadada: percebe-se que o doutor Josh Keyes se refugia numa frase de algibeira para "justificar" a ausência de amarras sentimentais (bonds) na sua vida - "sou casado com o meu trabalho" - e percebe-se logo que o outro cientista, o doutor Serge Leveque, tem uma visão refrescante sobre esse... cliché. Casado com o trabalho e amante da sua mulher, fórmula - científica? - para o sucesso de quem quer fazer a diferença na vida. Argutos brainy feelings.
Dr. Josh Keyes: I'm married to my work.
Serge Leveque: So am I. Which makes my wife my mistress. That's why I'm still in love with her.
Dr. Josh Keyes: I'm married to my work.
Serge Leveque: So am I. Which makes my wife my mistress. That's why I'm still in love with her.
quarta-feira, 13 de junho de 2012
A Torinói ló/O Cavalo de Turim (2011) de Béla Tarr e Ágnes Hranitzky (III)
O cavalo não come, logo, o homem tem de regressar à sua casa e, dentro dela, vestir-se, pela mão da filha, em conformidade com o seu novo estado: o estado de quem espera e de quem apenas resta a actividade do tempo, uma luta contra ele, a mais passiva e interior das lutas. A companhia da filha, tal como toda a sua presença no filme, sublinha o lado uno deste binómio, recordando aquele filme de Sokurov, "Mãe e Filho": dois seres que, no fundo, são um. A filha põe em funcionamento tudo e quase se reduz à sua função, mas também quase se reduz a esse "tudo", por isso, não podemos dizer que não a sentimos com a mesma comoção com que sentimos o seu pai (e nisso se equivalem).
Com a roupa de casa, uma manta ou não a protegê-lo do frio, o homem velho, porque só um dos seus braços serve para cortar lenha, ocupa grande parte do tempo a, precisamente, assistir à sua "dissolução" no ar - como a poeira que rodopia lá fora, como a célebre frase marxista, "tudo o que é sólido se dissolve/desmancha no ar". Claro que uma recuperação miraculosa do cavalo pode precipitar "a viagem" tão aguardada e, em certa medida, tão necessária, mas neste filme o grande milagre, milagre muito terreno, deu-se com Nietzsche e o seu enlouquecimento "beatificante".
A imagem - que não vemos - do filósofo alemão agarrado ao animal, naquela paisagem empobrecida, quase sem alma, não deixa de assombrar todo o filme e aproximá-lo do misticismo secular de um "São Francisco, Arauto de Deus" de Roberto Rossellini. O cenário apocalíptico, que chega ao nosso conhecimento através do único "forasteiro" que entra em casa dos protagonistas, parece também compor esta doença-mundo provocada pelo ocaso do autor de "O Anticristo", leia-se, pelo seu engrandecimento espiritual - pela sua "santificação" terrena - no momento em que abdicou de existir em solidariedade com o sofrimento de uma "criatura menor". De facto, não há "criaturas menores" em Tarr.
Morremos um pouco mais sempre que nos repetimos, sempre que "usamos" as nossas coisas - adquirir, degradar, degradar, adquirir, como diz o "profeta" forasteiro, mensageiro da morte (mui nietzschiano), que "invade" a casa... e que aqui trago em still - e somos "usados" pelo tempo que corre indiferente aos pequenos assuntos humanos - mas não descartamos que este reaja aos gestos que destroem a repetição, que se desembaraçam de qualquer ideia de posse ou propriedade, gestos como o de Nietzsche agarrado ao cavalo. E se falamos de tempo como duração também falamos, obviamente, do tempo meteorológico, partes do mesmo todo em "O Cavalo de Turim". Percebemos que esse tempo parou algures lá atrás (em off) e que, desde o primeiro plano, reinicia, reforçado, a sua senda de degradação das coisas, dos animais e dos homens. O cinema de Tarr sempre foi um cinema de mortos ou de mortos-vivos, ao ponto de, tantas vezes, nos conformarmos com o destino trágico das suas personagens: num mundo desumanizado, já-morto, qual o sentido de "viver"?
"O Cavalo de Turim" guarda estes fantasmas - a imagem espectral da filha à janela, que analisei no ponto 4 é suficientemente expressiva neste sentido. Mas a co-habitação entre nós e as suas rotinas acaba por representar a fuga mais terrível de Tarr a essa desumanização: estando ali, com eles, compreendendo-os na sua existência, acabamos também nós, espectadores, por nos "sentirmos espectros" no nosso mundo - e o efeito de "desfasamento" depois da sessão, com tudo o que nos rodeia, é apenas o primeiro sinal de que Tarr transformou a sua visão desumanizada do mundo, a sua ontológica indiferença a nós, espectadores, numa forma de acção: os fantasmas saíram do filme para nos assombrar, até ao ponto em que também nós nos tornamos parte dessa "grande família espectral", a humanidade segundo Tarr.
(continua)
A Torinói ló/O Cavalo de Turim (2011) de Béla Tarr e Ágnes Hranitzky (II)
(3) batatas fumegantes cozem ao lume... Depois da primeira - e única bem sucedida - viagem do filme, vemos a mulher a preparar o almoço, cozendo duas batatas em água fervente. O vento lá fora continua a soprar com violência - continuará até ao final do filme? Não, continuará bem para lá do seu final... ainda o ouço agora, depois de 24 horas passadas sobre o primeiro visionamento de "O Cavalo de Turim". As duas batatas são servidas em pratos circulares de madeira e a água que as cozinhara começa a evaporar informemente, como que rimando com a tempestade lá fora, acompanhando enfim o movimento instável da poeira e folhas que circulam sem destino pelo ar, fora daquela casa.
Como o fotógrafo do século XIX/XX Alfred Stieglitz (conhecido pela sua obsessão pelo efeito estético dos gases e vapores, naturais e industriais, ou mesmo por nuvens...) ou como James Benning (idem, idem, aspas, aspas), o olho de Tarr é puxado para as formas informes produzidas na/pela Natureza: duas batatas apanhadas nas redondezas, cozinhadas com lenha cortada pelo único braço bom do velho, "expressam-se", "manifestam-se", na evaporação da água escaldante; a chama na lamparina também decide "desalinhar-se" com a sua função e começa, também ela, a expressar-se. Estes são exemplos de como esteticamente se faz ecoar no interior daquela casa de madeira, órgão vivo, segunda pele daquele casal forçado à reclusão pelas vicissitudes de outro organismo, o do cavalo doente, a inconstância formal do elemento mais constante de todo o filme: o vento (analisado no segundo ponto).
Os pratos circulares, a garrafa de Pálinka - líquido tão transparente, tão informe!, quanto a água que as personagens extraem do poço "moribundo" - e os parcos utensílios de cozinha pousados naquela mesa pesada de madeira compõem algumas das naturezas mortas (still life) do filme, exemplos dessa "vida parada" que é animada - outro paradoxo belíssimo - pelas rotinas diárias de pai e filha. Tarr filma a repetição dos seus gestos sobre as coisas - e as coisas por si, repetindo o movimento "cosmológico" do primeiro plano do cavalo, indiferente, portanto, ao que é/está still e ao que é/tem life - sempre num ângulo diferente: por exemplo, primeiro vemos o pai a comer a batata, depois, no segundo dia, Tarr filma de frente a filha, para, no terceiro dia, em plano médio, captar os dois à mesa, com a janela (e a tempestade que "transmite" ininterruptamente, qual televisor sempre ligado...) em pano de fundo. O mesmo acontece com o ritual em torno da roupa - que também rima com o tirar da pele das batatas... - e a bebida de Pálinka antes do protagonista abrir a porta e enfrentar o exterior e a sua (im)previsibilidade constante: terá o vento amainado? Impossível. Terá o cavalo melhorado? Impossível.
(4) o homem velho faz como a filha antes do almoço... Esta ideia, tão moderna, da repetição, do "não sair do mesmo sítio", atinge o seu pináculo na obra de Tarr aqui, em "O Cavalo de Turim". É verdade que o cineasta húngaro sempre preferiu o vício do círculo à progressão da linha, é também verdade que os seus travellings sempre foram falsos-travellings, porque a viagem se reproduzia em espaços familiares - quantas vezes "acabamos" no centro da aldeia, em "Werckmeister...", quantas vezes "acabamos" perto ou dentro do bar Titanic em "Damnation", etc.? Contudo, em "O Cavalo de Turim" Tarr reduz radicalmente o espaço de manobra da sua câmara ao cenário de uma casa ("cá dentro"), sendo o exterior sugerido mais a partir do seu interior ("lá dentro") do que mostrado através de incursões de câmara pelo espaço ("lá fora")...
A janela é, contudo, o eixo fundamental nesta alternância, entre o "cá/lá dentro" e o "lá fora", tendo Tarr filmado-a em todos os ângulos imagináveis, a partir de dentro, nas costas das personagens que "assistem ao espectáculo da paisagem" (que Deus fez? que é Deus?) ou mesmo a partir de fora, sempre em travellings suaves ("planantes"), que se aproximam da janela mais vezes do que se afastam dela - mesmo quando ela é filmada por fora, como vemos naquele espantoso e terrífico plano (que trago aqui em still) perto do fim do filme. "A personagem que olha", todo um tema na obra de Tarr, e a própria figura da "janela como medium desse olhar", outro tema recorrente (veja-se o início de "Damnation" ou algumas passagens de "Sátántangó"), são reificadas em "O Cavalo de Turim" como motores espectaculares (sim, espectaculares) da acção.
Contudo, apesar da alternância interior/exterior, estamos aqui no limite de um filme de cerco hawksiano ou, se preferirem, carpenteriano - é o vento e não o "nevoeiro" (de "The Fog" como das montanhas de "Only Angels Have Wings") ou, primeiramente, a ameaça do frio ("The Thing") que prende as suas personagens indoor... Trata-se, portanto, de uma lição de mise en scène inesgotável, feita de inúmeras variações sobre elementos fixos, que, pelos ângulos diferentes da câmara, se fazem repetir sob uma perspectiva sempre renovada. O mesmo espaço renova-se, por isso, indefinidamente, em cada ritual diário. Por isso digo - e desenvolverei mais esta ideia - que o découpage é mais temporal do que espacial: a câmara vai moldando "tempos novos" em espaços, em gestos, já por ela várias vezes percorridos e já por nós várias vezes reconhecidos.
Eis um "filme de câmara" como poucos, exercício de mestria na sua acepção mais "escolástica". Tarr ensina: como filmar várias vezes o mesmo como se fosse sempre pela primeira vez? A pergunta parece bem formulada, mas não está: como filmar várias vezes o mesmo como se fosse sempre pela primeira e a última vez? É neste "última vez" que se parece encerrar esta "vertigem pelo fim" que antecipa cada movimento em "O Cavalo de Turim" e que, em suma, enforma fantasmaticamente o todo, já que desde o início, facto indissociável desta experiência, Béla Tarr fez associar a este título a sua despedida do cinema.
A herança que nos deixa só podia estar num único sítio: nas suas imagens e o filme carrega-as como as personagens, a certa altura, fazem transportar todas as suas coisas - nesta altura, todas elas são tanto delas como nossas, tal o grau de familiaridade com as suas diferentes "faces" - naquela carroça que, puxada apenas por mãos humanas, com o cavalo "de fora" a acompanhar, aparece agora, também ela, debaixo de uma luz nova; dá-se a ver, pela primeira vez, como corpo pesado feito de madeira e rodas (muito diferente do primeiro "plano do cavalo mais o homem e o cavalo..." analisado no primeiro ponto).
(continua)
terça-feira, 12 de junho de 2012
A crítica como capacidade para "fazer rever" os filmes (à procura do tempo perdido)
Jean-Luc Godard, "Masculin féminin" (1966)
Quando se diz "revista de cinema" trata-se de evocar um filme de tal maneira que o outro o reveja, isso deixa-nos satisfeitos. (...)
A cinefilia não consiste em ver filmes apenas, na penumbra, (...) consiste em não falar durante hora e meia, estar obrigado a escutar, a olhar, e durante a hora e meia seguinte recuperar o tempo perdido. E se não há ninguém com quem falar, podemos escrever, o que acaba por ser uma forma de falar. (...) Entre o que se alucina, o que se quer ver, o que se vê realmente e o que não se vê, o "jogo" é infinito: é aí que tocamos na parte mais íntima do cinema. Mas é necessário que esse jogo seja dito em algum momento.
Serge Daney, "Trafic na Jeu de Paume", apresentação do segundo número da revista Trafic em Maio de 1992, na última intervenção pública do crítico francês, que viria a falecer no mês seguinte, faz hoje exactamente 20 anos
Etc.
Etc.
[Por favor, apreciem a ausência das palavra "gosto" ou dos seus qualificativos da praxe (o mais alto..., o melhor..., o certo...), a que se reduz sobranceiramente a actividade de alguns críticos... Quais? Aqueles que vão ao cinema para "provar" filmes ou definir trends autorais.]
A Torinói ló/O Cavalo de Turim (2011) de Béla Tarr e Ágnes Hranitzky (I)
Depois, as imagens acendem-se como uma lamparina antiga e ouvimos, em on, cada plano. (1) Um cavalo em primeiro plano agita-se enquanto locomove o homem na sua carroça, (2) o vento revolto é sinalizado pela poeira e folhas secas que circulam pelo ar num turbilhão, (3) batatas fumegantes cozem ao lume e, em pratos circulares de madeira, são despidas da sua pele pelas mãos calejadas do homem velho, (4) o homem velho faz como a filha antes do almoço e senta-se em frente à janela, (5) o pai é auxiliado pela filha para se despir e para se vestir (ainda uma questão de "pele"), (6) o travelling/a viagem, como todo o découpage, é temporal, apesar da presença inabalável do espaço e das coisas, (7) o "tempo fechado" sopra enquanto o velho e a filha esperam pelo cavalo, (8) transportam-se coisas na carroça como se fosse possível transportar todas as imagens do filme, (9) a roda gira ao passo do homem e ao trote do cavalo (ao trote do homem?) como as coisas giram, dis-cursam, à volta do mesmo ponto em todo o filme, (10) a janela e o cavalo são símbolos de uma outra experiência do tempo, o primeiro um segundo ecrã no filme, o segundo uma questão de transporte, logo, também uma questão de meios (media).
(1) Um cavalo em primeiro plano... O primeiro plano de "O Cavalo de Turim" é um tour de force. Na obra de Béla Tarr, só talvez as primeiras imagens de "Sátántangó" lhe podem chegar perto, por despertarem o mesmo tipo de chamamento ancestral sobre o olhar, cada vez mais desmaterializado, cada vez mais "longínquo" e "fantasiado", do espectador moderno. Um cavalo faz mover uma carroça. A câmara acompanha a viagem, alternando entre o plano apertado sobre o rosto do animal e o plano geral da carroça. Neste ponto, o travelling é mesmo um travelling: testemunho de uma viagem (quem viaja é o homem) e simulação de um movimento orientado por um corpo (que é o do cavalo, o animal).
Não se trata, portanto, apenas do plano de uma carroça, porque, para isso, Tarr teria optado por filmar o conjunto (homem mais cavalo). O que o realizador húngaro faz é mostrar um cavalo e um homem, o que só é possível, precisamente, através do gesto do plano contínuo que alterna entre os dois, o cavalo mais o homem e o cavalo (= carroça). Aqui reside, em toda a sua pungência plástica, a gravitas cosmológica da câmara de Tarr: ela gravita em torno dos corpos, como astros em torno do sol, indiferente, enfim, ao peso cultural e humano das coisas, aproximando-se portanto de uma ideia ontológica significativa: o plano deve ser mesmo plano, como a realidade que nos aparece à frente, o que não quer dizer que destituída de profundidade e da tal... gravitas - esta emana, naturalmente, das pessoas como dos animais como das coisas... a câmara deve apenas planar no tempo e no espaço para captar esta Verdade.
A maravilhosa cena inicial de "Werckmeister harmonies" é suficientemente paradigmática: em noite de borga, numa tasca "esquecida" no mundo, o protagonista encena o movimento do cosmos, transformando os companheiros de copos em planetas e em luas e fazendo-os girar à volta de si e entre si. Sob a égide de um cinema como o de Andrei Tarkovski (a sua mais notória influência cinéfila), a câmara de Tarr acompanha estes movimentos como que vinda de Cima... Ela aterra para planar sobre os homens, os animais e as coisas; para despertar, enfim, os seus mistérios mais profundos - tudo é um planeta, tudo é homem e tudo é coisa e, antes de mais, dirá Tarr, tudo é animal ou "tudo tem tudo" lá dentro. Veja-se como o homem é tão eloquente a comunicar com o cão (ou vice-versa?) no final de "Damnation" e como o olho de uma baleia atravessa o olhar humano para reflectir directamente os mistérios do universo em "Werckmeister...".
A câmara de Tarr plana sobre os corpos viventes, mas também sobre os corpos não-viventes (já lá vamos), e torna-os iguais entre si, encontrando uma espécie de vector originário que os atravessa. A sua profundidade está no facto de se tornarem planos - de se verterem, mantido que está o seu peso específico neste mundo visto a partir do cosmos, numa determinada duração de cinema. Daí o enigma e a claridade (= a claridade do enigma) daquele plano-sequência: um cavalo e um homem, os dois mexem-se, o primeiro puxa o segundo em direcção a algo ou a algum sítio, a câmara realiza esta dinâmica sem reduzir - e anular - o homem e o cavalo da imagem à construção audiovisual mais fácil e corriqueira. Com efeito, o primeiro longo plano de "O Cavalo de Turim", que está entre o episódio de Nietszche e o início do filme propriamente dito, que capta na eternidade das suas formas uma transitoriedade..., não representa e não é, de facto, o de "uma carroça em andamento".
O vento é o grande protagonista e a palavra apenas surge para pontuar, logo verificar, a sua constância. Como escasseia, a palavra nunca fez fluir tão bem as imagens de Tarr. Se antes, "a história" e "o diálogo" pareciam mais um pretexto para as imagens do que parte do seu texto, agora, finalmente, Tarr parece ter encontrado o ponto de equilíbrio ideal: finalmente a palavra - e toda a sua dimensão eminentemente narrativa - vem das imagens, libertando-se estas dos constrangimentos "anedóticos" que tiravam autenticidade ao aparato formal, por exemplo, do "policial" "The Man From London" ou do "filme-apocalípse" "Werckmeister...", etc. O virtuosismo de Tarr já não é performativo - como, em parte, era antes - tal como o vento se tornou, enfim, a matéria que interessa à sua câmara e não tanto as palavras (previamente escritas em guião) dos actores. Tarr soube silenciar os humanos para fazer ouvir, mais alto e mais fundo, os sons dos seus gestos, movendo e re-movendo os pequenos obstáculos do quotidiano, e os sons da sua imobilidade, isto é, a "expressão" sonora da envolvência.
O vento que sopra lá fora não é, contudo, puramente sonoro e é aí que entra o lado visível do "invisível": fazer ouvir o vento é fácil, fazer vê-lo, quase ao ponto de sentirmos que "tocamos nele", já é mais difícil. É aí que o fetichismo do vento entra em jogo e, desta vez, com a ajuda de um fantasma chamado Victor Sjostrom - para captar o mais-visível-do-invísivel, Tarr invoca e evoca um mudo! A poeira e as folhas são expiradas continuamente pelo vento lá fora e é com os olhos nelas que as personagens, sentadas na mesma cadeira, gastam parte do seu tempo. O tempo aparece aqui confundido com outro vector constante e "inultrapassável": o vento. Ao contrário do que se costuma dizer, não se sente aqui a "respiração do tempo", porque em "O Cavalo de Turim" o vento - seu alter-ego primordial - é uma "expiração contínua", sob a forma de um turbilhão regurgitante feito de pó e outros despojos da Natureza.
O espectáculo visual de "O Cavalo de Turim", para as personagens e, também, para os espectadores, está no lado-visível-do-invisível, o vento, isto é, no lado turvo e opaco da paisagem, dito ainda de outro modo, na maneira como Tarr pinta a paisagem pobre (quase quase tão pobre como o primeiro rascunho de um desenho a carvão) que rodeia a casa do filme. Como dizia Serge Daney, "The Wind" de Sjostrom desvelava o poder alucinatório do mudo - a sua capacidade de fazer ouvir os sons da vida. Ora, Tarr faz aqui algo analogamente notável que é tornar a pobreza visual de uma paisagem, a sua reduzida "visibilidade", no objecto de fascínio e de espectáculo para o olhar das personagens/espectadores. O "menos visível" tem fome de "ver mais", como o "não audível" pode desencadear a poderosa alucinação do som.
Da mesma forma, e citando Alexander Dovzhenko, outro cineasta do mudo, referência menos óbvia no universo de Tarr, também a imobilidade dos corpos produz puro movimento visual. Nas cenas em que, dentro de casa, a palavra é muda e os sons já não são produzidos pelos corpos humanos - "no embate" com os objectos do seu dia-a-dia -, a paisagem parece invadir todo o espaço do filme - uniformizá-lo - pelo som (exterior) do vento omnipresente. O movimento visual é provocado pela inércia e virtualmente potenciado pelo som "que vem de fora". As personagens assistem ao exterior e nós assistimos a elas e ouvimos com elas o espectáculo lá fora como "um filme dentro de um filme".
Se "Arsenal" de Dovzhenko fosse sonoro, talvez tivéssemos experimentado este puro espectáculo de som, nomeadamente, em face daquelas poderosas imagens de mães abandonadas ao sofrimento pelos filhos na guerra e que, nas suas casas de madeira quase sem móveis, paralisam o corpo à espera de um sinal (sonoro?) vindo lá de fora, vindo de Deus. Sem grandes transcendentalismos, Tarr "actualiza" este meu delírio dovzhenkiano: e se Deus é, afinal, nada mais do que uma paisagem feita de vento, pó e folhas secas?
(continua)
sexta-feira, 8 de junho de 2012
Prometheus (2012) de Ridley Scott
No fim, até a ideia de "Destino" ou de "Missão", quando as naves colidem, parece estar ali plasmada, naquelas imagens feitas pelo homem que um dia, deus ex machina, realizou uma das maiores obras-primas da ficção científica e do terror. Scott está velho e é ele que eu vejo naquela personagem interpretada por um Guy Pearce "sumido" na sua própria maquilhagem de multimilionário apodrecido pelo tempo (que bizarria!), o tal entrepeneur enigmático que montou toda a operação por trás de "Prometheus". O make up é tão falso quanto a confusão das suas motivações, entre o tal egoísmo puro - "quero viver mais!" - e o sofisticado projecto existencialista - "quero conhecer o Nosso criador!" e saber "a Verdade!".
A retórica de "Prometheus" é uma valente trapalhice, mas não é inocente. Não se deixem enganar pelo espectáculo CGI, porque as intenções das personagens são confusas - e isso nota-se no filme - tanto quanto as intenções de quem realiza e produz o filme são de uma nitidez total - e isso, por muito que tivessem lançado dólares sobre o assunto, é mal disfarçado também ali mesmo, no tecido das imagens... Com efeito, a cientista - a nova Ripley - acredita em algo maior e é esse "algo maior", tão cósmico, mais cósmico que o próprio universo (ele parece pequenino ao pé de tamanha fé, não é?), que começa por cortar completamente com a raiz de "Alien", filme no espaço, mas também filme subterrâneo, onde as naves, feitas de corredores exíguos e labirínticos, parecem esgotos pestilentos, onde o medo - muito "urbano" - pelo bicho a bordo e a esterilidade indesejada de Ripley - que acaba por o adoptar como "filho bastardo" - servem de subtexto à sua tagline poderosamente nihilista: do espaço profundo e abissal, ninguém nos ouve, ninguém nos quer... o "alien" somos nós, sempre. ("In space no one can hear your scream".) "Prometheus" diz "não, no espaço há um Alguém que nos ouve", que zela por aquilo que esta humanidade pouco "prometeica" - afinal, Deus é o abrigo... - faz nos confins do espaço.
Ridley Scott envelheceu, perdeu a irreverência e, pior que tudo, "beatificou-se". Deu uns passos atrás, benzeu-se entretanto, e tornou-se pio, finalmente. A ideia de ameaça - conceptualizada em "Alien" - tornou-se em "Prometheus" num pro forma inútil, porque a "fé" e a "justiça" salvarão o dia. Aliás, e espetando eu aqui mais um alfinete, parece-me particularmente irónico que num filme em que a protagonista é uma cientista que acredita em "algo maior" - afinal, no espaço alguém nos responderá, mesmo que esse alguém, por embirração ou convicção, escreva habitualmente "por linhas tortas" - se ponha à venda uma monstruosa retórica de fé, que se consubstancia no seguinte: primeiro, Scott e amigos procuram convencer-se a si próprios que vale a pena prolongar o estado moribundo de um franchise com quase 40 anos de existência; segundo, Scott e amigos tentam convencer o espectador a ter "fé" nesse convencimento.
Exercício de fé no filme e do filme, isto é, "Prometheus" é marketing puro, logo, uma negação cinematográfica - as imagens não se demonstram, mostram-se, os filmes não são "convencidos", são "ditos", realizar é "fabricar" algo, não "vender" esse algo (o vender não deverá passar do cartaz, do trailer e da bonecada, isto é, deve ficar, sempre, por uma questão de MORAL, à porta da sala de cinema). "Prometheus" está tão auto-consciente desta operação, operação que o comanda durante as suas duas horas e picos de duração - o tal "convencer a ter fé" -, que chega a ser irritante a forma como se esquece de "criar personagens", ou só cria personagens estúpidas (exemplo dos outros "cientistas" a bordo, nomeadamente, o "bad boy" enjoadinho que é namorado da protagonista e o incongruentemente grosseiro geólogo de serviço) ou se escusa de dizer algo novo, feita que está a reafirmação de uma sentença já mil vezes debitada.
"Alien vs. Predator" foi uma batalha difícil de superar (ainda que eu ache Paul W.S. Anderson, actualmente, um cineasta mais interessante que Ridley Scott), mas agora "Alien" bate-se com o seu criador em "Prometheus", filme sobre "Criadores", altos e super-humanos, a levarem uma boa puxadela de orelhas por parte do paizinho lá do céu, aquele que a mulher da ciência "carrega" ao pescoço num símbolo que põe em sentido todo o Universo. Em 1979, mas também em 1993, no filme mais religioso e mais agnóstico da saga realizado por Fincher, não havia sermões destes e de nada valiam as bênçãos e as superstições, tão pequeninas, tão irrelevantes, do homem face à escuridão infinita do espaço. Era só ele, o homem, contra o Alien, mas agora, hold your horses!, "Alien" luta contra outros "predadores" e contra um todo-poderoso Deus. O homem, o Homem, está sempre a salvo. Não há desafio, apenas retórica de fé, retórica da publicidade e do make up ou, para sermos mais exactos, do make believe.
quinta-feira, 7 de junho de 2012
terça-feira, 5 de junho de 2012
Les parapluies de Cherbourg (1964) de Jacques Demy
Sim, "Minnelli revisitado", pois claro. Será assim mesmo que se pode resumir o trabalho de Demy em "Les parapluies de Cherbourg"? Não creio que se possa ficar por aí, sobretudo, quando estamos num musical onde não se dança e apenas se canta. Mas cantam-se canções como em Minnelli? Não, cantam-se diálogos ou os diálogos cantam-se. De qualquer modo, detectamos aqui algo de extraordinário: no filme de Demy, não se dialogam "canções" mas cantam-se os diálogos, já que estes não obedecem, necessariamente, à gramaticalidade da canção (que estrutura? Que refrão?), eles são ditos "cantando-se". Demy parece levar a sério este princípio: a musicalidade não está no que se diz (que pertence, é fácil de ver, à realidade do filme), mas no modo como se diz (que pertence, como está claro, à realidade delirada do filme) - e esta é uma diferença fundamental, desde logo, com o musical clássico de Hollywood.
Por outro lado, podemos dizer que não se dança. Certo? Aqui coloco uma hipótese que diz que "não, aqui, dança-se", mas não como num filme de Minnelli: não são os corpos que se põem em movimento, eles apenas põem em movimento/em ritmo as palavras "banais" que dizem uns aos outros. Mas será só isso? Na minha opinião, também se dança em "Les parapluies de Cherbourg" tal como também se fala como quem canta - mas não exactamente cantando-se canções. Todavia, essa dança é puramente temporal: de cada mês, de cada estação passamos para o mês e a estação seguintes, às vezes o filme detém-se ali, mas o tempo nunca descansa, é irrequieto e tem pés de bailarina - e, neles, os sapatos vermelhos de Powell & Pressburger? Demy faz da elipse uma oportunidade para o tempo se expressar, rodopiando e saltando e, em suma, voando daqui para ali, com uma leveza e uma "naturalidade" que reconhecemos, por exemplo, num Gene Kelly ("Singin' in the Rain"). O tempo é o elemento dançante neste romance belo e comovente entre um casal que partilha um amor maior que a possibilidade da sua existência (só Deus sabe...).
À medida que as palavras se naturalizam nesse registo "cantado", a fantasia vai esmorecendo e é aí que sentimos Demy como um cineasta do seu tempo e da sua geração, não um guloso realizador francês, lunaticamente deslumbrado com as fantasias technicolor do grande Minnelli; desejoso de também ele se provar capaz de comer uma dessas fatias fartas do bolo mais chamativo da festa: o musical clássico, precisamente. "Les parapluies de Cherbourg" é um filme da Nouvelle Vague, porque também aqui falamos de um homem e de uma mulher à deriva, em processo de ruptura com o mundo, por causa de um amor que o e os transcende, que está sempre adiantado em relação ao tempo (ela não se deve casar já, porque ainda é muito nova, diz a mãe; ele não pode ficar com ela porque está na idade de ir para tropa, etc.).
O último plano - de grua, tinha de ser! - parece simular o "fim de festa" dos filmes americanos, mas, depois daquelas últimas singelas - demasiado singelas - palavras trocadas entre o casal "traído pelo destino", nada resta que não esse gesto vertical de realização - muito mais espacial do que temporal - que sinaliza o fim dos saltos e dos rodopios distractivos dessa terceira personagem, a única que baila - mas como baila e como parte corações! -: o tempo.
segunda-feira, 4 de junho de 2012
Cosmopolis (2012) de David Cronenberg
Em "Cosmopolis", não estamos num mundo feito de ecrãs, próteses, pacemakers, extensões mais ou menos visíveis de uma realidade ameaçada pela sua própria extinção, mas já num mundo feito ecrã, contra o qual o corpo resiste e reage, como um anti-vírus. A realidade ganhou uma nova pele: não é que ela seja extensão de algo, ela con-funde-se com esse algo. Mas esse algo é sempre estranho, leia-se, sempre exterior - uma alteridade ainda não plenamente inscrita nos corpos (impura informação pura). Giamatti dá conta deste desfasamento, entre a realidade feita ecrã e os corpos, quando resume a sua angústia: há sempre um eu e os outros, um é informação para outros, mas não entidades do mesmo mundo... isso nunca - e jamais?
É essa disjunção, esse agravante desfasamento, que "Cosmopolis" trata. Desde logo, porque é feita uma distinção explícita (pornográfica) entre o "dentro" e o "fora", entre o interior da limusina-escritório e o exterior que vemos "desfilar" através dos vidros do carro ou em informações dadas pelo "guarda-costas" do nosso protagonista. Esta "ecranização" do mundo não é amenizada pelo nosso ponto de vista: apesar de estável, e "presente", a vida no interior do automóvel, e o seu passo lento, fúnebre, apontam para um caminho sem retorno, em direcção à morte. Smoothly...
A imagem de Robert Pattinson (actor do ano, até ver), com o seu fácies pálido, os seus gestos minimais, as suas palavras automáticas - e sente-se o magnífico texto de DeLillo, sente-se mais como excreção cerebral do que como expressão humana... - contribui sobremaneira para a definição do sintoma: o corpo, isolado que está na sua carapaça metalizada, ou no seu sarcófago sobre rodas, por muito limpo, por muito sujo, por muito vivo que esteja, não sobreviverá à "ecranização" do mundo, ao devir-medium, ao devir-informação de tudo. O que Pattinson-herói procura resgatar e compreender é a tal "deformação", o que resta de irrepresentável neste mundo que nos é "enviado" sob a forma de gráficos, imagens de TV, imagens feitas TV.
Um mundo, como também se diz a certa altura, onde até a palavra "computador" soa anacrónica - a tecnologia desaparece com o corpo, para que uma realidade, uma hiperrrealidade parida em resultado desse confronto fatídico (corpo vs. tecnologia), venha produzir uma existência puramente vicária ou "informacional" (pós-"Videodrome"). Fala-se de cheiros, fala-se de sexo como parte de um "programa de vida" (um problema de soft ou hardware? Não, um problema desse ware chamado realidade), fala-se de segurança (ameaças, intrusos, "rats", etc.) e de irregularidades (o tal irrepresentável, a tal assimetria da próstata, grande lição de moral que salda o caminho auto-destrutivo do nosso herói). A ironia é fria como o metal, porque aqui a resistência, a grande Resistência, não está nos grupos que incendeiam as ruas, lançam tartes aos homens do Capital, todos eles pertencem já a essa realidade feita ecrã.
Esqueçam Che Guevara: Pattinson, na pele de um especulador multimilionário, "o homem da limusina", é o grande guerrilheiro libertário. Giamatti diz que esperava dele a sua salvação, ao mesmo tempo que o ameaça de morte, antecipando uma espécie de "crucificação" cínica não do "homem que destruiu o mercado" mas do homem que, confundindo-se com ele, se quis suicidar, pelo menos, "virtualmente". E isso porque ele acaba por perceber que o que está em jogo, sob pena de se perder para sempre, não é o "complexo" empresarial que dirige, nem a sua fortuna individual, nem o projecto de uma "ratazana como unidade monetária" da turba contestatária, mas sim o "sentir-se vivo" do seu corpo em dissolução num mundo-ecrã sem salvação possível - eis um tratado não sobre uma "fortuna", mas sobre a "Fortuna" do Homem.
Aqui, Pattinson (actor da saga "Twilight") continua a ser o "vampiro sexy no caixão": a sua sede de sangue, mesmo seu, a sua fome de sexo, a obsessão pelo seu "corpo humano" em extinção - nos exames procura ele a imagem gráfica dos seus órgãos ou a confirmação do seu médico de que está e continua vivo? - mais a fetichização do seu embalsamento metálico ("Crash redux"), o seu devir-limusina, convertem-no na representação alegórica mais desafiante do nosso mundo contemporâneo ("mundo demasiado contemporâneo", dir-se-ia, citando-se de novo uma das inúmeras tiradas deste texto magnífico). Ou, pelo menos, desde que Ferrara, outro apocalíptico de luxo, decidiu acabar com ele, às 4:44.
sábado, 2 de junho de 2012
Recorte de falas (XXI): La rabbia
Por que a nossa vida está tomada pelo descontentamento e a raiva? Esta pergunta levou Pasolini a uma viagem pelo século XX, estava este pouco mais do que a meio da sua vida, mas já marcado por duas grandes guerras, revoluções sangrentas pela Europa e pelo mundo fora; acima de tudo, em 1963, Pasolini já se apercebera que o cinismo do "novo homem" pode ser devastador. Por isso, a mensagem é dirigida às gerações que se arrastam, como zombies aprumados, sobre as ruínas invisíveis da Europa. Este relato da barbárie detém-se, poucos minutos depois de ter começado, neste gesto: "Viva a liberdade". É, ou deve ser, se se quer verdadeiro, um gesto (ou uma imagem) e não uma frase ou, muito menos, um slogan para estampar na camisola ou ostentar num cartaz.
Por ser um gesto tem de ir bem para lá da sua enunciação em palavras, isto é, para ser verdadeiro, para ser dito, o grito "viva a liberdade" tem de ser libertado deste e daquele modo - o modo das celebrações profundas. Este modo, o "como", é mais determinante do que o mero "dizer", o "ditar alto" ou o "repetir" por impulso (numa manifestação, por exemplo): "Viva a liberdade" só é o que quer dizer se for dito com o corpo todo, se for dito "sem guião", sem "cassete", se for dito do fundo, mais interior, da alma para se fazer ouvir, se aí chegar, além-mundo (o risco de, para lá dele, ninguém ouvir não é risco nenhum). Devemo-nos co-mover para que este "viva" nos ponha em acção, mesmo que os cínicos contra-ataquem com palavras actualmente tão desacreditadas - sintoma dos tempos... - como "ingenuidade" ou "amadorismo".
Narrador em off: Se não se grita "viva a liberdade" humildemente, não se grita "viva a liberdade". Se não se grita "viva a liberdade" a rir, não se grita "viva a liberdade". Se não se grita "viva a liberdade" com amor, não se grita "viva a liberdade". / Vós, filhos dos filhos, gritam com desprezo, com raiva, com ódio: "E viva a liberdade". Portanto, não gritem "E viva a liberdade". E isto vós, filhos dos filhos, sabem que gritam com desprezo, com raiva, com ódio.
(Da mesma forma pergunto: quantas pessoas do cinema, que vivem dele, que fazem dele o seu "ofício", que se dizem cheias de princípios, conseguiriam frasear "viva o cinema" sem um pingo de desprezo ou sobranceiro sarcasmo?)
Por ser um gesto tem de ir bem para lá da sua enunciação em palavras, isto é, para ser verdadeiro, para ser dito, o grito "viva a liberdade" tem de ser libertado deste e daquele modo - o modo das celebrações profundas. Este modo, o "como", é mais determinante do que o mero "dizer", o "ditar alto" ou o "repetir" por impulso (numa manifestação, por exemplo): "Viva a liberdade" só é o que quer dizer se for dito com o corpo todo, se for dito "sem guião", sem "cassete", se for dito do fundo, mais interior, da alma para se fazer ouvir, se aí chegar, além-mundo (o risco de, para lá dele, ninguém ouvir não é risco nenhum). Devemo-nos co-mover para que este "viva" nos ponha em acção, mesmo que os cínicos contra-ataquem com palavras actualmente tão desacreditadas - sintoma dos tempos... - como "ingenuidade" ou "amadorismo".
Narrador em off: Se não se grita "viva a liberdade" humildemente, não se grita "viva a liberdade". Se não se grita "viva a liberdade" a rir, não se grita "viva a liberdade". Se não se grita "viva a liberdade" com amor, não se grita "viva a liberdade". / Vós, filhos dos filhos, gritam com desprezo, com raiva, com ódio: "E viva a liberdade". Portanto, não gritem "E viva a liberdade". E isto vós, filhos dos filhos, sabem que gritam com desprezo, com raiva, com ódio.
(Da mesma forma pergunto: quantas pessoas do cinema, que vivem dele, que fazem dele o seu "ofício", que se dizem cheias de princípios, conseguiriam frasear "viva o cinema" sem um pingo de desprezo ou sobranceiro sarcasmo?)
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