Até fico arrependido de já ter escrito algumas coisas, mas não posso. Por quê? Porque estou inocente: a mediocridade e a mais obtusa inanidade não me vão pôr aqui a engolir uma única palavra que escrevi sobre este ou aquele indivíduo, sobre esta ou aquela estação. Se já falei aqui no "grau zero" da apresentação ou divulgação do cinema em televisão, tenho então de inspirar bem fundo e dizer que
a pobreza intelectual do que li neste post de João Lopes e depois na
notícia do Diário de Notícias sobre o novo
magazine (des)personalizado do canal Hollywood ultrapassa os limites da minha tolerância.
Quem me conhece minimamente sabe que não coloco, à partida, reservas à existência de programas da TV privada com maior ou menor número de junkets ou que façam gala de passar trailers de filmes distribuídos pela Lusomundo. Já realizei uma conferência onde fiz questão de fazer representar no painel alguém ligado a esta vertente pipoqueira do jornalismo cultural televisivo. Diga-se que essa "alguém" foi Mário Augusto, pessoa que, nesta área, conseguia dar várias lições de seriedade e profissionalismo a qualquer uma destas novas caras do canal Hollywood.
Mas, recuemos: muita coisa me deixa incrédulo. Primeiro,
tal como João Lopes, considero, no mínimo, desconcertante a ligeireza com que uma ex-apresentadora do "5 para a Meia-Noite", voluntaria ou involuntariamente, reduz ao mais embaraçoso vazio intelectual o trabalho que deve envolver qualquer espaço concebido para in-formar, pensar e dar a pensar o cinema. Se a rapariga, coitadita, não tem tempo para ver os filmes, a solução - segundo a mesma publicita às escancaras, sem pingo de pudor... - está encontrada: ver
trailers e
making ofs no YouTube, fazendo depois uma espécie de "share" no programa em questão... O leitor menos atento a estas coisas até poderá pensar que, se calhar, porque o trabalho parece tão ao alcance de qualquer pessoa da geração da apresentadora, esta só lá está ou porque tem uma cara bonita ou porque, tendo uma cara bonita, já apresentou outro programa do género.
Que a Luísa Barbosa, por ser da escola "5 para a Meia-Noite", jóia da coroa da televisão "de serviço público" RTP2, constitui uma mais-valia para programas deste género num canal que é uma playlist aleatória de filmes, não me surpreende, mas que revele "de onde vem" de forma tão pornográfica na sua primeira intervenção pública enquanto apresentadora do "Estreia da Semana", isso já me deixa bem mais preocupado. Estaremos todos assim tão insensíveis à irresponsabilidade e desonestidade intelectual das pessoas que fazem a nossa televisão? Haverá "crítica" capaz de despertar a consciência do espectador para este tipo de abusos discursivos?
É que a rapariga não está só nesta cena degradante. "Estreia da Semana" terá 4 apresentadores, cada com uma exigente pasta em mãos. Bernardo Mendonça tem a seu cargo os filmes de ação e guerra, Luísa Barbosa dedica-se às comédias e aos romances, a Maria de Vasconcelos competem os filmes de animação e infantis e Bruno Pereira está encarregue dos thriller e dos dramas. O objetivo é fornecerem um olhar personalizado sobre o filme em questão. Aguardamos impacientes pelo estilo "personalizado" que esta malta que nem se dá ao trabalho de ver os filmes irá investir nas suas análises aos seus filmes devidamente pré-etiquetados de "guerra" ou "infantil". Mais um contributo para o "engavetamento" - desta feita, "personalizado" - do cinema no espaço mediático.
Enfim, escusado será dizer que, mesmo antes da estreia - a deles no canal... -, este grupo de apresentadores já deu provas de ser um desastroso erro de casting mediático. Mas o que dizer de quem - no caso, alguém chamado Bruno Pereira - se orgulha de escrever os seus próprios textos, de não ser um "papagaio"? Então, não vai o Bruno Pereira papaguear nos seus textos, seguramente, muito "personalizados", as coisas que ele, a Luísa e companhia "apanham" na Internet? O que dirão os outros colegas do Bruno Pereira, os das outras estações, que, no fundo, são, numa frase, enfiados no saco dos "papagaios" da Sétima Arte? O que deve o leitor retirar disto tudo?
Desde logo, eu, enquanto espectador, retiro que o canal Hollywood só pode ser pessimamente gerido. Já pressentia isso face à progressiva redução de qualidade da sua programação estilo "playlist", mas depois desta amostragem fico mais do que convencido. Aliás, registo com quase igual estupefacção a intervenção do director de programação do canal, que diz que não passará - e não passa - cinema português porque o canal se chama Holywood. Faz sentido, é verdade, mas o mesmo canal passou durante anos e até há bem pouco tempo vários grandes clássicos do cinema mundial, como "Ran", "Fahrenheit 451" ou "A Noite Americana". Mas, se fazia algum sentido o que disse no início, Paulo Guedes - é o nome do senhor - apressa-se a concorrer em matéria de indigência mental com os seus pupilos: Temos espaço para outros produtos. Só em termos de filmes é que não podemos apostar tanto nos portugueses. O canal chama-se Hollywood... fará sentido um filme português se for mais comercial, com grande sucesso das salas portuguesas.
Não vou sequer entrar na discussão do quão relativo pode ser o critério "grande sucesso nas salas portuguesas", porque o disparate está no facto de só fazer sentido passar cinema português num canal chamado Hollywood se este se sair bem nas salas... Primeiro, não faz sentido: se é para não passar cinema não-americano, não passe, mas enganar o leitor e o espectador com retórica televiseira mal amanhada, isso é mais uma machadada na credibilidade de quem dirige o canal. Por outro lado, com essa observação ilógica e desonesta, o senhor director mostra ter a visão mais redutora e ignorante que podia haver da história do cinema nascido em Hollywood - para Paulo Guedes, Hollywood será sinónimo de blockbusters, é isso? - e, segundo, é a visão mais estreita e potencialmente desastrosa para um canal inserido num mercado, cada vez mais, de oferta única. Quer o canal oferecer o que os outros oferecem? Sucessos nas salas, sucessos nos outros canais. Estes são, como o director lhe chama, qual bom tecnocrata televisiveiro, os bons "produtos" do canal Hollywood.
O canal Hollywood não quer oferecer qualquer alternativa mas, muito pelo contrário, oferece a confirmação de todos os preconceitos televisivos em relação aos modos de ver e dar a ver o cinema, pensar e dar a pensar as suas imagens... Esta estação, com este discurso assassino do cinema, profundamente anti-pedagógico e insultuoso, nomeadamente, para o espectador, revela o paradoxo em que está caída: um canal de cinema que quer oferecer "produtos", americanos ou americanizados, que já toda a gente conhece e que quer veicular informação papagueada do YouTube e outros sites da Internet gaba-se da originalidade da sua política de aposta no que é nacional, no que "é nosso". Na parvoíce e na chico-espertice, originalidade não lhe falta.
(Na sequência desta asquerosa peça jornalística, decidi suspender por tempo indeterminado a recomendação de filmes do canal Hollywood na Newsletter do CINEdrio, bem como retirei o meu like da página facebook do canal. O canal Hollywood é uma estação privada de televisão, tem o direito de dar os pontapés que quiser em todos aqueles que trabalham séria e dignamente no, sobre e com o cinema, mas, felizmente, eu também tenho cá em casa um televisor e um computador que são propriedade privada... Enquanto espectador e utilizador da Internet farei o que estiver ao meu alcance para dignificar a pedagogia audiovisual, que tanta falta faz neste país.)