(Esta expressão do cinema como necessidade mais do que criação galvanizante e egotista faz-me lembrar um dos momentos mais extraordinários da história do cinema, sendo que também esse momento não é um filme. Orson Welles, depois de ficar sem os negativos da sua adaptação de "O Mercador de Veneza", vai de carro para o cimo de uma montanha isolada do mundo para ler, de frente para a câmara, os diálogos finais do grande clássico de Shakespeare. Estas preciosas e raras imagens foram incluídas num dos melhores documentários sobre o realizador de "Macbeth": "Orson Welles: The One-Man Band".)
Mas voltando ao que nos traz: cedo o realizador iraniano se apercebe da impossibilidade de "recriar" o seu filme usando só fita adesiva para marcar o espaço sobre um tapete e a ilusão "dogvilleana" dos objectos e das pessoas. Ele diz algo para todos aqueles que insistem, de forma particularmente ignorante, na ideia de que um bom filme é a tradução simples de um bom argumento. Que um bom argumento faz um bom filme e que, por isso, o argumentista é mais do que essencial - uma espécie de "política de autor" aplicada aos homens que escrevem. Esta ideia é partilhada por alguns "auto-denominados" cinéfilos, mas também por muita gente que "usa" o cinema como distracção e que, por sistema, descreve um filme a outra pessoa contando a sua história. Depois o outro dir-lhe-á que "não, não vi esse filme". No meu mundo ideal, uma pessoa - qualquer que ela seja - identifica a outra um filme descrevendo um plano, um gesto de uma personagem, um décor... e não contando anedoticamente a sua estória...*
Jafar Panahi: Se os filmes se contassem, não se faziam.
* - "Epá, este é aquele filme com o Jack Nicholson, em que ele rouba a identidade a um tipo e depois anda em fuga pelo deserto, com uma gaja... Sabes?". "Não estou a ver. Acho que não vi esse". OU, numa versão "mundo ideal": "Epá, este é aquele filme com aquele plano-sequência final que dura vários minutos, em que a câmara atravessa como que por magia uma grade". "Ah, sim, sim: "The Passenger" de Michelangelo Antonioni."
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