Benning
Up you go, little smoke.
Up you go, little smoke.
Up you go, little smoke...
Jack Kerouac in "Pull My Daisy" (1959)
Enquanto não arranjo a única edição disponível no mercado deste cineasta maior, tenho de me contentar com algumas descobertas "à margem da lei", que merecem, por vezes, uma certa arqueologia on-line, devido à sua extrema raridade - ouviste Criterion? De qualquer modo, Benning, que já me tinha marcado o ano de 2010, volta a deixar "mossa"* neste 2011: é que "One Way Boogie Woogie/27 Years Later", "Utopia", "Deseret", "RR" e "11 x 14" e, claro, "Ten Skies", bem como (fora de casa, no DocLisboa) "Twenty Cigarettes", são objectos únicos que fazem do "aparentemente" insignificante ou do "aparentemente" informe (as nuvens, o fumo, da indústria, do cigarro, do comboio, da memória...) pontos de partida para um dos mais desafiantes universos estéticos. Benning é, posso dizer (posso?), a melhor coisa que aconteceu ao cinema americano nos últimos 40 anos.
*- um aparte: cuidado com os correctores automáticos, que eles têm o poder de transformar uma "mossa" numa "moça". Por muito que faça sentido, não devemos cair na esparrela.
O Blu-ray de Luxo
(Douglas, Erice, Kieslowski e Powell/Pressburger)
Estes dois stills deslumbrantes - imaginem um filme só com imagens desta potência - pertencem a "Comrades", uma das grandes descobertas deste ano de cinema aqui por casa. Não direi que Bill Douglas seja uma descoberta de 2011, porque não é - já conhecia a sua "trilogia da infância", que passou na cinemateca há coisa de um ano. Contudo, "Comrades" é "a obra" de Douglas; a sua única longa-metragem, que dura perto de 3 horas, desenrolada no século XIX, e que acompanha o nascimento e dissolução trágica do primeiro sindicado laboral, no Reino Unido. As referências ao pré-cinema, uma magia itinerante mais ou menos circense, feita de efeitos rudimentares de luz e jogos de sombras, fazem de "Comrades" também um dos mais fascinantes filmes sobre as origens da Sétima Arte.
Portanto, "Comrades" é um dos filmes ideais para se fazer o update para o Blu-ray, tal como o são "El espíritu de la colmena" ou "La double vie de Véronique" ou o clássico intemporal "The Red Shoes", precisamente, os discos em "alta definição" que mais me iluminaram a alma por estes tempos. O que coincide com a obra rara de Douglas é que os filmes de Kieslowski e as revisitadas obra-primas de Erice e Powell/Pressburger também nos devolvem a um fascínio primordial pela imagem cinematográfica; o mundo de Frankenstein que deixa a criançada de queixo caído pertence ao mesmo reino da magia e sedução de Véronique/Weronika e o seu mundo num berlinde ou num teatro de fantoches, tal como estes dois podem rimar com os palcos encantados e encantatórios de "The Red Shoes". Mundos que cabem, por exemplo, na exibição do Diorama, magnífica!, no filme de Douglas, a quem aqui faço uma vénia e presto homenagem.
Scénario du film 'Passion'
Ainda não o revi, mas parece-me que é um dos filmes mais relevantes de Jean-Luc Godard: um dos mais desassombrados e luminosos do período pós-Maio de 68, mas, não desmereçamos o Godard vídeo-ensaísta da fase Miéville e além, "Scénario du film 'Passion'" é também uma das maiores obras-primas do cineasta francês, ponto final. Bergala diz que deve ser o mais franco filme sobre o processo de criação e eu tenho de concordar, mas acrescento isto: este humildemente intitulado filme é o mais portentoso escancaramento de portas para o universo de Godard. Se há "manual" para se perceber como é que Godard trabalha e constrói os seus filmes - redes de conceitos como bem apontava Deleuze - então este é "o filme". Dito de outro modo: "Scénario du filme 'Passion'" pertence àquela categoria de filmes que nos levam a uma revisão e reavaliação de toda uma obra.
Lionel Rogosin
Já tinha lido sobre ele, mas só o descobri verdadeiramente no início do ano, graças a uma edição excelente da Carlotta Films. Sei agora que os seus filmes vão sair em Blu-ray nos States ao longo do próximo ano. É uma grande notícia para os cinéfilos, porque Rogosin é, provavelmente, o mais importante cineasta esquecido dos anos 50/60 na história do cinema norte-americano. Cassavetes referi-o como uma das suas principais influências, ao lado de Morris Engel e Shirley Clarke. Com efeito, Lionel Rogosin fez três filmes de uma pungência fora de série.
"On the Bowery" só pertence ao seu tempo porque houve uma confluência extraordinária de talento e visionarismo da parte de quem o fez. Ele é o extremar do projecto neo-realista, brutal imersão na realidade escondida do bairro problemático de Nova Iorque, atacada pela delinquência, alcoolismo e droga. Rogosin trabalhou in loco e com "restos humanos" - rezava todos os dias para que membros do cast não morressem, de repente, de cirrose ou outra degenerescência provocada por uma vida miserável corroída por vícios vários. Meteu "política e sociedade" na agenda de Hollywood, porque "On the Bowery" despertou a consciência americana para um país que a "indústria dos sonhos", muito autisticamente, escondia como poeira que se varre para debaixo do tapete. O tapete foi levantado e Rogosin foi o primeiro a lançar a poeira para os olhos do espectador. Desconfortável? Ainda não viram nada...
Depois foi para a África do Sul fazer o mais brutal - e, curiosamente, o primeiro - filme anti-apartheid: "Come Back, Africa". O exercício, novamente de inspiração neo-realista, foi seguramente uma lição de cinema para os futuros pontas-de-lança do "cinema moderno", à cabeça, Jean Rouch. Depois, nos anos 60, Rogosin volta a tocar na ferida e arranca o espectador "de consciência tranquila" da sua zona de conforto com uma das mais chocantes e truculentas "farsas" contra a guerra nuclear: "Good Times, Wonderful Times". Estamos num cocktail londrino, só com very important people, mas percorremos, no "arrepio" de uma montagem alternada terrível, toda a história de horror e destruição da Europa e do mundo no século XX. E aqui, prepare-se, espectador incauto, volta a não haver "cedências". Come back, Rogosin.
Terra em Transe
Glauber Rocha, cineasta político de Resistência, aliás, cineasta que fez da Resistência uma estética e uma política em si mesmas. "Terra em Transe" não será o seu filme mais adorado, talvez não seja aliás, o seu filme mais "aventureiro" - esse é "A Idade da Terra" -, mas é, para mim, a sua obra-síntese, quase perfeita. Filme que explora a natureza paradoxal do poder político, a sua dualidade moral, diria, intrinsecamente "terrorista". E fá-lo contando a história de um homem, jornalista de profissão, "entalado" entre duas vias e que, numa via sacra de dúvida, acaba por apenas confiar na sua solidão. A terceira via é a via do "guerreiro solitário", que em "Terra em Transe" é uma espécie de António das Mortes de colarinho branco, usando uma imagem (mui retórica) sacada do universo peculiar de Glauber Rocha. O exotismo está na palavra de ordem: esgotadas as possibilidades, há-que resistir ao irresistível, combater o que nos ultrapassa, destruir o indestrutível. Definitivamente, coisa pós-faustina.
La cicatrice intérieure
Finalmente em DVD! "La cicatrice intérieure", se quisermos evitar a etiqueta "o projecto avant-garde mais relevante dos anos 70" (para além
do já acima citado "11 x 14", claro), dizemos, rapidamente, que é errância ultra-sensualista/sensorial, obra paisagisticamente "despida" pela câmara de Garrel e pela música de Nico. Quando se ouve "My only child", percebe-se o significado disto tudo. E o "tudo" deste pequeno filme de 60 minutos oferece-se, agora, em imagem cristalina. Baixem as vossas resistências e (re)descubram-na/sintam-na com olhos de ver, de "ouver". "My only child be not so blind/See what you hold/There are no words no ears no eyes/To show them what you know".
Mouchette
Falha estúpida minha, que colmatei este ano graças à Criterion - saúdo, contudo, a RTP2 e o seu magnífico double bill, duro e belo, "Mouchette" mais "Au hasard Balthazar". É provável que não haja Bresson que melhor deixa contaminar o seu preto-e-branco "acinzentado", liso, árido, com a atmosfera psicológica que rodeia a sua personagem-mártir, mais uma, não, "a personagem-mártir", Mouchette, frágil como a poesia, existência mastigada pela vida... antes da (sua) morte, momento que dilacera o coração e agride o espírito daqueles que ainda vivem de esperanças terrenas... Triste, duro, mas infinitamente belo. E, por isso, foi o meu visionamento mais forte de 2011.
Bring Me the Head of Alfredo Garcia
Cinema com muchos cojones. Mas não só. "Bring Me the Head of Alfredo Garcia", prenda "envenenada" que a TCM me deu no início de 2011, é o "excesso obsceno peckinpaniano" revolvido por uma mise en scène perfeita, de controlo absoluto sobre os lugares das coisas na história e da história nas personagens - e não o contrário. Filme perfeitamente consciente da sua quase insustentável dose de iconicidade e desbragada virilidade, que funciona - e como funciona! - porque "aguenta" elegantemente o excesso de tudo.
O noir do ano
Houve alguns concorrentes de peso, como "Naked City" de Jules Dassin, "Le quai des brumes" de Marcel Carné ou - se considerarmos um "noir" - "Fallen Idol" de Carol Reed, mas a escolha recaiu sobre o filme maior e mais perfeito - perfeitamente imperfeito - de Edgar G. Ulmer, o clássico série B, pai do "noir do pós-guerra" americano, "Detour". Filme a 200 à hora - o ritmo de produção de Ulmer em estado puro, portanto - que condensa todos os ingredientes do melhor "noir". É "destravado", mas, por isso mesmo, aliás, brilhante de uma ponta à outra. Pare aqui, estenda o polegar e deixe-se levar pela boleia.
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