Na minha opinião - tenho mesmo de começar esta crítica assim? -, este filme não lança qualquer mote nem chega a tomar o pulso a uma nova cinefiliação, nem tão-pouco traça os caminhos para a descoberta ou redescoberta dos grandes clássicos mudos; pelo contrário, este é como que
a última versão daquela gama de comprimidos, de uma dose só, que o espectador - o mais indolente e coitadinho - toma para se assegurar que lá bem para trás, na história do cinema, não ficará nada por metabolizar*. "The Artist" compila e joga habilmente com todos os clichés possíveis da "arte do mudo"; é por isso a mais recente "última pedra" sobre as ruínas de Fairbanks, das irmãs Gish, de Gloria Swanson, de Harold Lloyd, de Chaplin e não a primeira pedra lançada para a construção de algo novo. Nada de novo, aliás, sai daqui, sem ser apenas a boa disposição decorrente da "inteligência do produto".
O preto-e-branco e o mudo são parte do mesmo gimmick, que descinefiliza mais do que é causa ou efeito uma nova cultura cinéfila ou de uma arqueologia cinéfila emergente - e daqui envio um muito sentido bem-haja aos críticos e cinéfilos que ainda acreditam no Pai Natal! "The Artist" é mais um produto da pós-modernidade: oferece o cinema mudo para o matar no exacto momento do consumo; fá-lo, contudo, acriticamente. Trata-se, portanto, de um filme que só vale a pena ser visto como o objecto inconsequente que é, algo que não o torna imediatamente num mau filme, mas apenas num filme que não se reproduz numa verdadeira estética.
Espanto-me por isso com todos os comentários que andam para aí a poluir o ar e a blogosfera com anúncios vistosos sobre as "grandes tendências" que este filme encerra - ele, que neste momento só quer levar o raio dos Óscares para casa, caramba! No meu cansaço tenho de ser franco: haver quem gaste latim neste tipo de formulações lapidares é que é sintomático de que, por vezes, temos ao nosso dispor demasiado tempo para escrever e pouco tempo para pensar, isto é, falta a alguma crítica - profissional ou não, o que conta é a subjugação à disciplina da quantidade e da velocidade - ganhar distância e aprender a relativizar face ao que tem sido a evolução da paisagem audio/visual (= uma história cheia de meteoros mediáticos cujo impacto é zero, ou, vá lá, cujo impacto se resume apenas a um tempo bem passado, mais concretamente, duas ou três gargalhadas e uma pequena lição não de cinema, mas da história do cinema em modo once upon a time... para adultos).
Também está claro que não posso concordar que este filme anuncie - ou invente! - uma terrível "estética do simulacro" - isso seria, a meu ver, ou levá-lo demasiado a sério ou, muito basicamente, pôr de pernas para o ar a história do cinema dos últimos quarenta anos. "The Artist" é um pedaço de cinema-cinema que diz tanto sobre os nossos tempos quanto, com outras valências cinematográficas que não importa agora analisar, um "The Good German" de Soderbergh ou as
falsificações clássicas dos Coen. Será menos corajoso que o nomeado para zero Óscares "Juha" de Kaurismaki- este procurava, de facto, ir além do mero exercício, para atingir um "estilo" - e estará a milhas dos Bogdanovich "revivalistas" - estes produziram uma nova maneira de ler o cinema pelas luzes do passado; abriram de facto caminhos a uma arqueologia cinéfila que não se limitava a renovar as suas colecções de cromos mas a recozinhar, assumindo o risco da total dissolução, a massa de que o passado se servia.
O filme de Hazanavicius levará mais à letra a fórmula "todo o cinema num comprimido", e isso poderá ser "mais um" sinal do modo como lidamos hoje com a nossa memória imagi(n)ária, mas daí a constituir-se como produtor de algo "subitamente novo" vai um passo de gigante. Também não há nada de "irreversível" - adjectivo catastrófico empregado por João Lopes - nos efeitos desse comprimido, visto que os estragos só se farão sentir em quem, por assim dizer, já estava atacado pela gripe bem antes das luzes se apagarem e o filme começar**.
"The Artist" é uma colecção de caricaturas, uma "compressão" de um mundo - o do mudo e o da passagem para o sonoro -, que elimina qualquer possibilidade de aventura estética além de si. Diverte na caricatura, comove-nos - sem saudosismos, é verdade - quando devolve o silêncio às salas, mas apenas se oferece como uma one way trip... Quando descobrimos no baú empoeirado do sótão as roupas da trisavó, é giro enquanto elas se vão sucedendo umas às outras, como um velho álbum de fotos, mas depois arrumá-las de volta no dito baú constitui um esforço tão ou mais sujo e inglório do que atirá-las para o lixo. Em "The Artist", estou em crer, o cinema mudo é um pouco como essas deslumbrantes roupas da trisavó que, mais cedo ou mais tarde, acabam no lixo, leia-se, caem no ou regressam ao esquecimento.
*- O filme não produz discurso para tanto, mas apetece brincar e dizer que à custa de "The Artist" o editor dos "1001 Filmes para Ver Antes de Morrer" já poderá tirar os poucos filmes mudos - e já agora também "Singin' in the Rain", "Sunset Boulevard" ou até "Modern Times" - que tem vindo a incluir nesse menu fast-food de cinema: afinal, para quê maçá-lo com velharias imperfeitas, se podemos sintetizá-las em hora e meia de grande diversão? Nem parece que está a ver um mudo, né verdade?
** - Por exemplo, pessoas para quem "1001 Filmes para Ver Antes de Morrer" é o seu manual de boas práticas cinéfilas.