terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O casal itinerante: ele é bruto e não sabe que a ama e que a ama "de morte"

"La strada" (1954) de Federico Fellini

"Fando y Lis" (1968) de Alejandro Jodorowsky

(Obrigado à Sofia Tonicher por me ter aberto os olhos para o óbvio: o filme de Jodorowsky é um remake sixties do fabuloso "La strada", que se podia chamar "Zampanò e Gelsomina".)

sábado, 25 de fevereiro de 2012

"The Tree of Life" revisto por Maria Filomena Molder

Não podia deixar passar ao lado um evento desta natureza, sobretudo, porque "em campo" estavam Maria Filomena Molder e aquela que foi, para mim, a obra-prima maior de 2011: "The Tree of Life" de Terrence Malick. Foi no âmbito do colóquio internacional Emoções e Crime (especificamente no dia 23 de Fevereiro 2012) que a filósofa portuguesa partilhou com o público a sua "leitura" deste filme, oportunidade não só para rever mentalmente "The Tree of Life", mas até mais para "ver pela primeira vez" os mundos significativos escondidos nas suas imagens claras e absolutas. Parece que digo uma coisa e o seu contrário, mas verão que não é e não tem de ser assim.

Depois desta exposição, que considero elucidativa quanto ao valor estético e filosófico deste filme de Malick, fiquei com a sensação plena de que um bom punhado de cinéfilos não quis enfrentar uma obra com esta claridade, precisamente, porque do cinema os mais cegos procuram respostas a perguntas feitas, ao passo que os que querem mesmo ver mais longe e mais fundo encontram na alta-indefinição (usando um trocadilho de Manoel de Oliveira) do imagiário malickiano um espaço aberto a perguntas novas e inesperadas, que se fazem, refazem e desfazem sempre que vemos ou nos lembramos do filme, da experiência de o termos visto, das suas imagens ou só da forma como aquela luz bateu naquele rosto eternizado por aquele plano fugaz. E, se calhar, o grande cinema - como a grande filosofia - é isso mesmo: espaço permanentemente renovado onde se questiona o mundo, sempre a partir de um ponto novo ou de um ponto que se renova sempre. Filosofia, uma questão de découpage...?

Esse ponto novo é a única constante no cinema de Malick, tal como a grande constante dos grandes pensadores livres, como Maria Filomena Molder. Malick e Molder, encontro que, com o consentimento desta, quero agora partilhar, em pequenos excertos, convosco - com imagens, cheias de ideias, dele e ideias, cheias de imagens, dela.

(Aviso que a intervenção durou perto de 40 minutos, pelo que só transcrevi as partes que servem melhor os interesses deste blogue. Este texto foi revisto pela autora, Maria Filomena Molder.)


(...) Este filme começa com uma citação do Livro de Job (...):"Onde estavas tu quando lancei as fundações da Terra?". (...) Esta pergunta vai reacender-se em todos os momentos do filme até ao fim, isto é, no meu entender, não é só uma dinâmica religiosa que está aqui em causa - e trata-se de um filme profundamente religioso - mas também, por assim, dizer uma dinâmica filosófica e estética. Isto é, a consciência é um acontecimento que tem raízes e essas raízes têm [formas] visíveis de modo que podemos dizer que antes da consciência está tudo aqui, está tudo aí, diante nós, à roda de nós e dentro de nós. Isto é muito importante, no meu entender, porque não estava só no tormento de Deus no homem, que é esta consciência dele saber que ele é o último elo da cadeia, ele que ignora tudo até ao seu aparecimento, isto é, ignora todo o sentido, não é origem de nada; não é só esta ideia que é preciso sublinhar de Deus no coração humano, é também a ideia de que tudo em nós é resposta, tudo em nós é afecção. (...) Depois de nós vermos estas palavras escritas, (...) vê-se uma luz que reaparece no meio do filme e que no termo do filme volta a reaparecer. É uma luz (...) que tem uma dinâmica interna que faz engendrar cores diferentes, um coração branco, uma expressividade azul, há vermelhos e rosas que se misturam e ouve-se água e aves, que devem ser aquáticas.

O papel da água na obra de Malick, sobretudo a partir de A Barreira Invisível, (...) é absolutamente central. O papel da água sob todas as formas: a água tranquila, tumultuosa, a água que se despenha numa fúria devastadora, a água que corre, a água que sustém... todas as figuras da água, a transparência da água, o que se vê debaixo da água, as plantas que estão debaixo da água, os seres humanos que aparecem debaixo da água, a criança que quando vai nascer (...) temos essa visão (...) que é o irromper das águas, (...) sai por uma porta e, ao mesmo tempo, há um urso de peluche e elementos do quarto que saltam fora (...).

Esta imagem, esta audição da água é muito importante, mas também é muito importante aquilo que se costuma chamar de voz-off no cinema, que no caso de Malick tem várias (...) soluções (...). Nós ouvimos alguém, que sabemos que é um homem, que depois vamos saber quem é, dizer a palavra irmão e, a seguir, a palavra mãe. E pergunta: "foram eles que me levaram até Ti?" E nós percebemos que o elemento religioso do filme está lançado, depois, com as palavras de Job.


A seguir fala uma menina, que nós sabemos depois que vai ser a mãe - nós nunca vimos imagens da infância do pai -, (...). Vemos imagens dela no campo, vemos os animais, vemos vacas, cordeiros, as árvores, o trigo e o pai que a leva ao colo. (...) Ela diz que as freiras lhe ensinaram que há dois caminhos: o caminho da natureza e o caminho da graça. A relação entre a natureza e a graça é um tema muito antigo: desde o cristianismo formalizado, mas nós podemos encontrá-lo, por exemplo, no judaísmo. Mas a relação com a natureza e a relação de inquietação (...) dentro da natureza é ancestral. Há a árvore da vida, há muitas versões da árvore da vida muito anteriores ao texto bíblico - encontramos no Egipto versões da árvore da vida (...)

Há uma maneira de traduzir natureza que eu prefiro, que vem do grego: physis. (...) Se formos à etimologia originária de natureza tem a ver com proveniência e nascimento (...), tem a ver com aquilo que é nascimento sem cessar (...). É essa a relação que os gregos têm com a natureza: (...) é princípio de génese e é a própria génese. Esta diferença radical - entre a natureza ser nascimento e nós nascermos - talvez esteja na oposição judaica e, sobretudo, cristã entre natureza e graça.

(...) A natureza quer agradar a si própria; quer ter poder; quer agir; quer receber o agrado dos outros; procura razões para se sentir mal; é distraída em relação à glória e formosura do mundo.

Por outro lado, a graça não quer agradar a si própria; suporta injúrias e maus tratos; suporta não ser amada.


Aquele que escolhe um caminho, não escolhe o outro, diz a mãe (em off). E subitamente nós vemos uma árvore, que sabemos que é a árvore que fica perto da casa onde vive aquela família. Nós já estamos agora no plano que é o da memória daquele homem [personagem de Sean Penn]. Vemos depois o baloiço que está preso nessa árvore.

Menciona [a mãe] que aquele vive fora da graça, terá um fim infeliz. Esta palavra aparece para nós quase como um elemento irónico, porque a dor está prestes a começar, a dor daquela que supostamente escolheu a graça. (...)

Agora aparece a dor da morte do filho, o segundo filho. Ela [a mãe] recebe a notícia pelo correio. (...) Ela só quer morrer, ela quer estar com ele. Dizem "agora estás nas mãos de Deus" e ela responde "Ele sempre teve nas mãos de Deus...e por quê agora, assim?". Porque é que a morte nos aproxima mais de Deus do que a vida?, esta é uma pergunta que eu faço. Ela não a faz, mas ela está no meio dessa pergunta. (...) "A dor vai passar", diz a avó, "mas eu não quero que passe", responde a mãe. (...)


Agora vemos o homem. Supomos que é um arquitecto. Mas não sabemos nada sobre ele. Malick não dá elementos: ele é muito elíptico e, ao mesmo tempo, de uma clareza sem fim. Não há qualquer obscuridade nas imagens, nós é que temos dificuldade em compreendê-las, mas elas não são obscuras: não podiam ser mais claras e evidentes. Aliás, há poucas imagens nocturnas, há algumas, mas quase todas são diurnas. E o que nós vemos é um homem, de cinquenta anos, em casa, com aquela que supomos ser a mulher e ele vai buscar a vela que acende. [Lembra o irmão falecido] (...) E nós começamos a ver a vida de infância, mas antes vemos a vida dele agora, que é passada entre aquilo que chamarei de sublime grotesco. Kant pensou muito sobre o sublime sob a forma emotiva. (...) Para Kant, a emoção é uma afecção que irrompe subitamente e se exprime e que produz (...) abalo, produz estremecimento, seja de alegria ou dor - não há valoração hierárquica aqui. O que produz emoção grotesca sublime? São os arranha-céus imensos; a verticalidade produz uma emoção, uma emoção que tem a ver com ameaça ou a consciência estética de que o nosso corpo não consegue medir (...). [É] a verticalidade imensa que os olhos não podem alcançar. Se o nosso corpo está próximo, há um sentimento emotivo ou uma emoção de ameaça terrível. E essa ameaça não é amenizada por nenhuma relação de intimidade.

O inestético profundo (por relação ao sublime kantiano) tem a ver com a redescoberta que o ser humano faz de si próprio em relação àquela verticalidade brutal, o ser humano sente-se ameaçado, mas não a consegue reaver como experiência íntima, não consegue apropriar-se da ameaça, transformando-a em prazer, como é o caso da visão de uma montanha (...). Na verticalidade citadina, arrepiante, sobretudo, porque é completamente homogénea: são vidros e vidros e céu, qualquer coisa que nos apercebemos quando ele sobe no elevador, que é transparente. Não vemos o interior do elevador; só ele a subir. Mas essa subida é feita sem elevação, é uma subida que não se pode fazer em relação à montanha. Portanto, eu chamo a isto sublime grotesco. (...)


Depois vemos a infância. Eu queria falar desta infância e da mãe. Aprender a falar. A fala não é uma aprendizagem de significados. Foi Wittgenstein que disse isto e eu acredito que ele tem razão. A fala é uma actividade. (...) "No princípio era o acto", diz Goethe no Fausto. (É uma tradução de "no princípio era o logos" do Evangelho de S. João.) O acto é um enxame de condições - fisiológicas, afectivas, cognitivas, ocasionais e necessárias... -; é um enxame de movimentos que a criança faz e que a mãe faz com a criança. E que estão associadas às palavras que utilizamos. A criança aprende muitas palavras que não percebe, nem tem que perceber, porque são gestos que ela faz com essas palavras que detecta. Como diz Santo Agostinho, "se me perguntam o que é o tempo, eu não sei. Se não perguntam, eu sei". Nós estamos quase sempre nessa situação quando falamos. Quando caímos em nós em relação a uma palavra, então procuramos a definição. Podem estar descansados que não a vão encontrar. Mas podem encontrar patamares de compreensão, a definição satisfatória não a irão encontrar.

Aprender a falar. Antes disso: aprender a andar. Para aprender a andar, é preciso alguém que ajude. Para aprender a falar, como é que se ajuda? Qual é a escola que ajuda a mãe a aprender a ensinar o seu filho a falar? Nós não conhecemos essa escola (...).

A criança aprende também a maravilhar-se, com o que vê à volta dela e consigo própria. Aprende a ter medo. Ela, por exemplo, vê alguém a ter um ataque epiléptico (...). Mas também aprende a sentir dor, a sentir uma ferida. Aprende a descobrir segredos, (...) segredos que nós não sabemos se fazem parte da casa ou da imaginação da infância (...).

A descoberta do irmão: o nascimento, o ciúme e a atracção.


A relação violenta com o pai, que é extremamente severo com ele, de ambígua, de poderosa, cheia de ódio e amor profundo.

O encontro com os desfigurados, com o velho que cambaleia (...), mas depois vem um rapaz aleijado, que não consegue andar bem, tem os braços que não se movem. Aí [nos miúdos gera-se] uma espécie de estupefacção perante a desordem que há no mundo - eles pensavam que havia ordem, mas há desordem. E essa desordem não tem qualquer justificação. Tudo está antes de nós e nós não somos chamados a dar justificação - a nossa consciência não consegue justificar.

E a seguir surgem os que vão ser presos, que foram apanhados. Também do ponto de vista físico desfigurados, ou esqueléticos ou com a cara meia desfigurada pelo pavor, com a resistência à prisão... E aparece um movimento que já tinha aparecido em filmes anteriores de Malick: que é o da mulher a dar água a um deles. (...)


Há a descoberta do corpo sob o ponto de vista sexual. A visão não só da mãe, mas também de uma rapariga. Ele entre no quarto dela, abre as gavetas da cómoda, tira uma combinação da seda. (...) Sai a correr, mas nós não vemos, e mete a combinação nuns restos do cais e lança-a às águas. Visão do ponto de vista estético do que é o desejo sexual na infância, com a adolescência a aparecer. (...) Teve início a algo que ele não sabe o que é. (...)


A graça. A graça é uma intensificação da natureza (...), uma transfiguração da ferida que há na natureza. E a ferida que há na natureza é mostrada, no filme, através de todas as imagens, que concorrem com todas estas que vos estou a falar, do surgimento do universo, das explosões, das misturas dos elementos e da separação dos elementos, do surgimento da terra, da primeira vegetação, dos primeiros animais mais complexos (...).

[A certa altura,] nós vemos a mãe voar, como se fosse uma marioneta... Há imagens profundas na poesia, por exemplo de Rilke, da marioneta. Ela está um pouco acima da terra, como se voasse... Há uma imagem muito profunda sobre a terra: "a terra é uma queda em suspenso" [citação extraída de L'experiénce émotionnelle de l'espace de Pierre Kaufmann
]. Nós vemos que toda a nossa vida é uma sucessão de quedas em suspenso. Uma espécie de luta contra a gravidade temporária. E nós vemos essa luta temporária sob a forma da suprema formosura, aquilo a que se pode chamar a graciosidade.

Há um combate [em Jack, na versão jovem da personagem encarnada por Sean Penn] entre a mãe e o pai. E em toda a sua vida haverá esse combate. E provavelmente não é toda a vida dele, provavelmente é a vida de cada um de nós.


No fim do filme, nós vemos este homem [Jack] a atravessar elevações difíceis, desertos, (...) ele anda à procura de alguma coisa. Nós vemos sempre tudo. Não há nada no interior daquele homem que não seja exterior. Isto é uma ideia muito profunda. (...) Está tudo diante nós antes de darmos por isso. Isto é, ele não tem consciência que está a correr a vida dele. Ele está a correr a vida dele - a vida dele está à frente (...) E a vida dele agora é procurar qualquer coisa que a memória da morte do irmão, já muitos anos depois, provoca. Todas as emoções da vida dele estão concentradas no lado do irmão (...)


Depois de atravessar muitas portas, há muita água..., ele chega a uma praia, não se sabe como: uma praia muito grande e muito branca, onde não há uma distinção muito grande entre areia e água. A água é calma. E há centenas, milhares de pessoas, de todos os tamanhos, feitios e idades... e subitamente nós vemos [Jack] a dirigir-se ao irmão (...), ao pai (...). Depois a mãe aproxima-se e pega na criança. E nós percebemos que qualquer coisa se está a passar naquele homem. Não sei se a vida tem sentido, (...) mas há qualquer coisa como: aceitar que está tudo diante nós antes de nós termos consciência (...). Incluindo o nosso futuro e a nossa compreensão do futuro. (...)

(Obrigado à Rita Benis pela excelente dica.)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Recorte de falas (XV): Contagion

Para além de um cientista que acaba por isolar o vírus do filme em laboratório, Elliot Gould interpreta a personagem que diz a frase mais hilariante - este também não é um filme hilariante, nem tão-pouco uma obra particularmente inspirada de Soderbergh, porquanto sobre contaminações e conspirações corporativas o "Erin Brockovich", sem "discurso-sobre-a-globalização" na ponta da língua, me chegava bastante bem... Mas, enfim, é Gould que, com esta tirada, acaba por nos lembrar que, ponto 1, este é um filme de Soderbergh e que, ponto 2, por ser um filme de Soderbergh as aparências iludem: "Contagion" (2011) é, como a tagline enuncia, um filme mais sobre o processo de contágio do medo - e a economia mediática e política que faz dele alimento - do que outra obra de cenário catastrófico que reconstitui os efeitos de uma epidemia à escala mundial, estilo Gripe das Aves - "o acontecimento" mediático na altura em que o filme foi feito - ou, recuando, ao jeito da devastadora Gripe Espanhola. Mas, seguindo em frente, e contextualizando, o cientista encarnado pelo grande Elliot Gould responde, qual "chapada retórica", do seguinte modo ao blogger "profissional" interpretado por Jude Law, homem cínico que, usando um "discurso justiceiro de verdade", fará tudo para produzir o "furo" que lhe garanta algo mais do que os 12 milhões de seguidores que diz ter online.

Dr. Ian Sussman: A blog is not writing. It's graffiti with punctuation.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Os vencedores da Primeira Copa A Angústia do Blogger Cinéfilo (V): a médio defensivo


Eric Rohmer, o meu Javi Garcia.

É o cineasta da palavra e, por isso, é o cineasta da imagem. Como assim? Pela câmara de Rohmer, a palavra dita torna-se palavra viva, logo, entidade real que comanda todos os gestos do filme. Nesse aspecto, estamos na presença de um processo primitivo que lembra aquele aplicado ao (melhor) cinema mudo - onde o elogio à palavra é permanente, onde as imagens são uma espécie de escrita colocada, sempre, em abismo... Mas, enfim, Rohmer é médio defensivo no CINEdrio FC, por precisamente ser um excelente "recuperador" da dimensão primordial do jogo. Não que seja exemplar a partir pernas ou "a matar por matar" jogo adversário, mas por ser exímio a puxar a equipa para a frente a partir de recuperações quase milagrosas que tem a meio campo. É um jogador muito amado no CINEdrio, por isso, é com especial prazer que deixo aqui este índice:

Críticas:



O Cinema Revisitado:



Culturas Visuais:


Novas Trilhas:


Recorte de Falas:

Night Moves (perceberão porquê se clicarem)

Etiqueta boboniana do cinema:


segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Salaviza vencedor e a sanita que somos nós e o flush away da sheet TV


João Salaviza está duplamente de parabéns. Primeiro, porque fez de novo história e, graças a "Rafa", ganhou o Urso de Berlim para melhor curta-metragem. Segundo, porque dirigiu muito bem o seu discurso aos principais responsáveis pelo esquecimento e desprezo a que está votado o nosso cinema na sociedade portuguesa. Um panorama político - fruto da muita tacanhez de uma certa elite político-partidária que nos governa há décadas - e um panorama mediático - marcado pela muita tacanhez de uma certa elite amiga da elite político-partidária que nos governa há décadas... - que estão apodrecidos e que já mal disfarçam todas as suas inaptidões, tremenda incompetência e inacção, colada à egomania tirânica resultante da fraqueza de uma opinião pública anestesiada, entre outros, pelos senhores jornalistas que, com grande profissionalismo, ou estão entretidos a produzir não-notícias sobre o novo corte de cabelo do Cristiano Ronaldo ou lá vão papagueando - que dá menos trabalho... - os "argumentos feitos" dos excelsos opinion makers, espíritos, está claro, extremamente independentes - e ai de nós pensar o contrário.

Destaco a sugestão mordaz que Salaviza deu em entrevista ao Público, quando o prémio ainda lhe fervia o espírito e o embalava para as palavras justas (sim, acredito em "discursos a quente"):

Era preciso que as televisões, não só a RTP mas as privadas, tivessem um compromisso maior com o cinema português. Para mim é inaceitável que não passe já hoje na televisão, nos três canais, o filme do Miguel Gomes.

O que diz é arrojado - porque ainda não foi pensado bem este esquema de janelas simultâneas entre as obras em competição e as agendas das nossas salas e televisões, associação que, segundo me diz quem sabe disto, foi testada com grande sucesso em "Antichrist" no ano em que "assombrou" Cannes. É arrojado, mas não só: é crítico e põe o dedo na ferida quanto à falta de motivação, ideias e vontade que os "homens da televisão" têm revelado para oferecer/recanalizar/devolver ao seu público Cinema, e muito do Cinema português que - como relembra Salaviza, reportando-se ao também premiado e elogiadíssimo "Tabu" de Miguel Gomes - consegue encher uma sala em Berlim com 1500 pessoas. Os compromissos existem, nomeadamente, na televisão pública para que haja uma programação rica - pensante e crítica e actual - no que diz respeito ao cinema português e internacional.

Com efeito, o problema não é a ausência de compromissos - tenho de vos relembrar? A sério? Ok: Contrato de Concessão de Serviço Público, história e cultura institucional da RTP2 e abertura de pelo menos 3000 cidadãos a mais e melhor cinema em televisão -; digo, o problema não é a ausência de compromissos, mas a ausência de quem cumpra compromissos de forma escrupulosa e séria e, na falta destes, de quem chame à colação e "ponha no sítio" - com punho cerrado - aqueles que andam a brincar aos serviços públicos neste país, usando como escudo um discurso tecnocrata vazio e mal amanhado, que até tem perdido sofisticação nestes tempos em que qualquer gato pingado que se vê num lugar público se acha dono da inteligência - que não tem - do povo - que a tem, mas que estará hoje, talvez mais do que nunca, estagnada... a boiar na água...


A minha sugestão era, também de modo "condicional", dedicar esta vitória aos "rostos" da RTP2, que acham que por dizerem cinema ou teatro ou música 200 vezes por semana no seu magazine cultural estão a levar o público aos cinemas... ou o cinema... aos públicos. Um dia João César Monteiro disse: "o público português que se foda". Noutro dia parecido, Manoel de Oliveira disse que "públicos eram os urinóis". Usando rapidamente um raciocínio lógico, diríamos que o cinema já mandou - muito expressamente - os urinóis deste país se irem foder. Disseram isso uma vez, já aqueles senhores e senhoras dizem isso todos os dias - em modo, acreditem, bem mais ofensivo - quando vão matando a nossa esperança de sermos urinóis que tenham, de uma vez por todas, a capacidade ideológica de "mijar de volta"... e a quem de direito.

Sobre o modo como o cinema pode redimir o estado de "urinol passivo" (passo o pleonasmo) em que estamos mergulhados, Zizek já nos deu, em "The Pervert's Guide to the Cinema", uma boa reflexão em torno da antológica sequência de "The Conversation", passada na casa de banho, em que uma sanita - leitmotif da filosofia althusseriana de Zizek - devolve à tona litros de sangue despejados cano abaixo, depois de accionado o automoclismo.

Are we basically not staring into a toilet bowl and waiting for things to reappear out of the toilet? (...) Is the entire spectacle shown from the screen not a kind of a deceptive view trying to conceal the fact that we are basically watching shit?

Neste caso, nós é que somos a sanita. Ou melhor, digo que é tempo de deixarmos nós de ser "toilet bowls", veículos, canais de porcaria que circula pelos canos cerrados da ideologia assassina do pensamento, da arte e da cultura; cujo grande compromisso com o Estado é, de facto, tratado como merda - e, caríssimo telespe(c)tador, tratado como merda, transformado em merda acaba. Este sábado, a RTP2 repetiu pela milésima vez o filme "Feios, Porcos e Maus", seguido de "The Prince and the Showgirl" de Laurence Olivier e com Marilyn Monroe, o grotesto escatológico com o glamour da Hollywood clássica. Não, nada disso: não há discurso subversivo nenhum neste double bill, é mais um flush away na boca do espectador (que também não tem nada a ver com o "autoclismo" do Renoir, que Luís Miguel Oliveira eternizou com graça e inteligência aqui).

O autoclismo - muito auto - de a sheet tv que é a RTP2 continuará ao serviço de quem nos usa como sanita. É tempo de devolvermos a trampa; é tempo de abrirmos os olhos, para mostrar que não é que quem veja "queira ver", apenas não nos resta grandes alternativas. E depois em Abril, ouvi dizer, regressa o "5 para a Meia-Noite"... Parece que já estou a ouvir: flushhhhhhhhhhhh....

Still de "Merde" (2008) de Leos Carax

sábado, 18 de fevereiro de 2012

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Os vencedores da Primeira Copa A Angústia do Blogger Cinéfilo (IV): a defesa esquerdo


John Carpenter, o meu Fábio Coentrão.

Quando digo que "faz a ala esquerda toda" quero dizer que é menino para transportar a bola do sector mais recuado do terreno para o mais avançado e fá-lo a uma velocidade alucinante - há pessoas que nem dão por isso e pensam que ele é avançado ou só defesa, isto é, a maioria não se apercebe dos movimentos intermédios. É no intermédio que a transferência - entre o clássico e o moderno - acontece: um estilo de jogo - e Carpenter é um jogador que gosta de arriscar - que já valeu ao CINEdrio FC várias assistências de classe mundial. Aqui, no CINEdrio blogue, dediquei-lhe dezenas de posts, mas destaco sobretudo os seguintes:

Críticas:

The Ward (2011) I e II




Rio Bravo (1958) de Howard Hawks II

O Cinema Revisitado:




A pesca siciliana como arte marítima da espera e do massacre (bela e violenta)

"Stromboli" (1950) de Roberto Rossellini

"Contadini del mare" (1956) de Vittorio De Seta

(Parafraseando JLG, sobre outro cineasta que não tem nada a ver com estas paisagens, apetece-me dizer isto: Se "o cinema é Nicholas Ray", o documentário é De Seta. Os seus documentários, recentemente restaurados, provam que, nos anos 50, não se fazia nada de mais significativo no campo do registo da vida, do trabalho, das pessoas... do que De Seta nas paisagens insulares da Sicília. Numa palavra: dizer que os seus documentários são deslumbrantes e inesquecíveis é um understatement. Aliás, dizer muito, falar demais, ante a força destas imagens resultará sempre num understatement...)

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Recorte de falas (XIV): The Fountainhead

Eu recorto a seguinte passagem, relativamente extensa, do colossal "The Fountainhead" (1949) por dois grandes motivos: primeiro, para mostrar que um filme sobre um arquitecto e a sua batalha para combater os cânones empedernidos pode ser essencialmente sobre outra coisa bem diferente, isto é, sobre o regime ditatorial que a política dos estúdios então impunha aos seus cineastas-funcionários, sobretudo, àqueles que questionavam e queriam mudar as normas; segundo, complementarmente, para revelar que Vidor, em 1949, estava ciente que Hollywood tal como a conhecia tinha os dias contados: a estética neo-realista mostrara brilhantemente como retomar o caminho iniciado por filmes, precisamente, de King Vidor, dos anos 20 e 30 (sobretudo, "The Crowd" e "Our Daily Bread"), fazendo ao mesmo tempo frente às grandes produções americanas e, mais importante, sem com isso cercear a liberdade criativa do cineasta-autor.

Por estas duas razões, as alegações finais do arquitecto visionário Howard Roark são mais do que aparentam: Vidor, que tinha marcadas na pele as chicotadas impostas pela ganância da indústria (os vários problemas de produção que rodearam "Duel in the Sun" lançaram o mote...), põe Gary Cooper a dizer umas verdades duras, a dar "uma lição de verdades duras... sobre a estrutura das revoluções não só científicas como artísticas da História" (um parêntesis: Thomas Kuhn só escreve "Structure of Scientific Revolution" em 1961), aos manda-chuvas de Hollywood. Esta situação de tribunal, em acta como em filme, serve de manifesto a tudo o que viria a seguir: o nascimento de um cinema dito moderno, onde o realizador era um autor, como uma ilha de um arquipélago vasto, cuja administração gozaria, enfim, de plena autonomia em relação às directivas da grande metrópole. Se isto aconteceu exactamente assim, não sei, mas lá que foi anunciado pelo grande arquitecto "moderno" Roark, no filme "The Fountainhead", isso não duvido.

Howard Roark: [delivering the closing statements of his own defense] Thousands of years ago the first man discovered how to make fire. He was probably burned at the stake he had taught his brothers to light, but he left them a gift they had not conceived of, and he lifted darkness off the earth. Through out the centuries there were men who took first steps down new roads, armed with nothing but their own vision. The great creators, the thinkers, the artists, the scientists, the inventors, stood alone against the men of their time. Every new thought was opposed. Every new invention was denounced. But the men of unborrowed vision went ahead. They fought, they suffered, and they paid - but they won.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Os vencedores da Primeira Copa A Angústia do Blogger Cinéfilo (IIIb): a defesa centro


John Ford, o meu Ricardo Gomes.

Bem, Ford é um realizador... ai, já me enganei. Recomecemos. Bem, Ford é um jogador com o qual tenho uma relação suficientemente complexa para preencher uns bons posts. Eu digo-me mais um hawksiano do que um fordiano e, com isto, distancio-me da corrente dominante na academia e na própria realidade do cinema nacional. Com isto, não quero dizer que aprecio Hawks na medida em que deprecio Ford. Pelo contrário: são dois cineastas maiores que ocupam lugar de excelência na história do cinema e das artes. Posto isto, poderiam perguntar-me: então por quê incluir Ford na equipa ideal e deixar de fora Hawks? Pergunta difícil de responder, mas não fujo a ela. Ford é um colosso, o seu cinema é o espelho do classicismo como um estilo totalitário, esmagador, impossível de ultrapassar...

Quem se deixa levar pela arte de Ford, não vai querer outra coisa e não vai fazer outra coisa que não Ford para o resto da vida: vai filmar, isto é, vai jogar como Ford e seguir mais ou menos dogmaticamente a gramática que ele nos deixou (uma verdadeira ortodoxia). Hawks é um desequilibrador e um desequilibrado (= um verdadeiro heterodoxo): é constante, tem obsessões, mas joga algumas vezes mais "contra si" do que a favor de uma ideia de "equipa" (leia-se, o classicismo griffithiano). Hawks é um génio absoluto e, por esse génio, punha-o a jogar em qualquer posição - não estando exactamente lá, Carpenter representa-o magistralmente -, mas não quis arriscar neste caso e concretizar esta minha íntima predilecção; preferi o conservadorismo fordiano, sobretudo, num lugar tão sensível como o centro da defesa, sobretudo, tendo em conta que ali ele era a pessoa indicada para fazer parelha com Eastwood - ou vice-versa. Posto isto - e já me alonguei demasiado -, presto a minha homenagem ao grande John Ford publicando o seguinte índice de posts com a assinatura do CINEdrio:

Críticas:



O Cinema Revisitado:


Pansignificação:








Le Havre (2011) de Aki Kaurismaki


O problema de "Le Havre" é o problema de todo o universo cinematográfico de tal modo personalizado que enfrenta o risco de perder fôlego tão rapidamente quanto desfilam e voltam a desfilar os elementos típicos dos seus "quadros com assinatura". Kaurismaki, como um Kusturica ou um Iosseliani, por exemplo, parece começar a padecer desse problema: o que outrora era uma "arte viva e nova" ameaça converter-se num museu de cera onde o que era vivo deteriora-se e o que era novo perde brilho. O esforço estético ou estilístico de conservação de um universo pode rapidamente degenerar num esforço museológico de conservação de uma assinatura. Problematizar o universo e desproblematizar a assinatura - na minha opinião, infelizmente, "Le Havre" faz o contrário.

Não que tenha deixado de suscitar simpatia, mais um punhado de bons sentimentos e até aquecer, aqui e ali, os corações sedentos de uma estética clássico-nostálgica tão benigna quanto a doença da mulher do protagonista (melhor: tão benigna quanto a mentira sobre a doença da mulher do protagonista...). Com efeito, Kaurismaki, isto é, o seu universo estilístico, não está totalmente encerado - como o de Kusturica - mas a ameaça de que venha a estar só me ocorreu agora, com "Le Havre" - para alguma crítica, tudo terá começado com "The Man Without a Past", filme que considero mais fresco e "vivo" do que esta sua mais recente obra.

Contudo, porque gosto de Kaurismaki, penso que as forças de "Le Havre" se confundem muitas vezes (diria, "demasiadas vezes") com as fraquezas de "Le Havre": é que os elementos de um discurso só o põem a discursar quando fazem algo para isso. O que aqui se passa é que os elementos do discurso kaurismakiano afirmam-se para dar conta da existência desse discurso - a auto-referencialidade gasta quase todo o combustível criativo aqui. Dito de outro modo: os elementos estilísticos de "Le Havre" afirmam-se para afirmar algo, mas pouco fazem para pôr esse algo em movimento e o transformar em "algo mais".

"Le Havre" está sempre no limite de ser uma sucessão de quadros onde Kaurismaki é o grande protagonista ausente. Há a cadela Laika que até merece referência no genérico de abertura (a Lucy que se cuide...) - é sobejamente conhecida a doce e simpática obsessão canina do cineasta finlandês -; há a iluminação "technicolor" ou os quadros vivos - a azul, a verde e a vermelho - que lembram os do pintor norte-americano Edward Hopper - algo que também não nos é nada estranho -; e há a tristeza alegre ou a alegria triste das suas personagens solitárias, para o caso, silenciosamente inebriadas por uma ideia de justiça mais moral e, não confessadamente filosófica ou utópica, do que propriamente societal - a personagem do inspector é várias vezes usado como peça crítica deste discurso que, por tantas vezes sublinhado, vira postiço.

Ou seja, os elementos que nos são familiares do universo "cosy" de Kaurismaki estão lá todos, mas aparecem presos à sua função auto-afirmativa, o que, na minha opinião, confere a "Le Havre" - e o seu ritmo sonâmbulo, a sua narrativa demasiado mastigada, também não ajuda - essa dimensão, diria, museológica onde tudo está no seu sítio para afirmar em que sítio está (os cameos de Pierre Étaix ou do chocantemente envelhecido Jean-Pierre Léaud são "graças para dentro" que se expõem, de forma ainda mais evidente, como peças de um velho museu...), onde nada é "baralhado" ou "mal colocado" para não gerar enganos.

Quase que conseguimos ler no subtexto qualquer coisa como: "Caros espectadores, isto é um "filme de Kaurismaki" e, por isso, não desespere que a cadela voltará a ser mostrada dentro de poucos minutos...e, como já é hábito, o concerto de rock esgrouviado que se segue promete retirar-vos, caros espectadores, da letargia cool em que mergulharam!". O rock esgrouviado em "Le Havre", outro número kaurismakiano típico que faltava referir, é o exemplo paradigmático do que corre mal aqui: o concerto, enfiado a martelo na história, tinha tudo para abanar, "desencerar" ou, acima de tudo, problematizar os outros elementos kaurismakianos do filme, mas acaba por surgir como mais um "quadro com assinatura" numa travessia algo árida pelo universo de um cineasta reduzido à sua sedutora simpatia. Nada mais.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Os vencedores da Primeira Copa A Angústia do Blogger Cinéfilo (IIIa): a defesa centro


Clint Eastwood, o meu Luisão.

Tenho-me desligado da obra de Eastwood sensivelmente desde "Changeling", mas "a presença" de Eastwood no meu espírito é quase uma constante. E é de "presença", forte, dura, por vezes, pungente, que o centro de uma defesa vencedora precisa - e se ao lado está John Ford, melhor ainda... Eastwood merecia mais, mas aqui no CINEdrio dediquei-lhe os seguintes posts:

Críticas:



O Cinema Revisitado:



Balanço do Ano:


Novas Trilhas:



Recorte de Falas:


domingo, 12 de fevereiro de 2012

Os vencedores da Primeira Copa A Angústia do Blogger Cinéfilo (II): a defesa direito


Budd Boetticher, o meu António Veloso.

Foi o mais consistente defesa direito da Copa A Angústia do Blogger Cinéfilo... Ele "não inventa", estão a ver? É um defesa direito clássico que ainda não mereceu o destaque devido aqui no burgo. Já destacámos recentemente parte significativa da sua obra na Newsletter do CINEdrio, mas aqui mesmo, nas páginas do blogue, ainda só lhe dedicamos algumas linhas - falta nossa, está claro.

Críticas:


Pansignificação:


Balanço do ano:


sábado, 11 de fevereiro de 2012

Newsletter #12: Jodorowsky


Um dia o cineasta chileno disse algo que dispensa que gastemos latim com pequenas introduções muito direitinhas: “Most directors make films with their eyes; I make films with my testicles.”

Alejandro Jodorowsky deve ser uma das personagens mais singulares - ainda entre nós! - do mundo do cinema: para além de cineasta, para quem não sabe, dedica-se ao esoterismo ou à "psicomagia", como lhe chama. Alguns dos seus livros são pequenos sucessos editoriais - de tal ordem, que os podemos encontrar já à venda em formato e-book, privilégio, por norma, dedicado aos que melhor vendem.

De resto, é como diz: "cinema feito com os testículos". Se quiser saber o que isso significa exactamente, não tem melhor remédio: deixe-se de mariquices e subscreva a Newsletter do CINEdrio.

E o que trará mais esta que será a 12ª edição da nossa Newsletter? Por exemplo, em matéria de cinema em casa, raridades de Marcel Ophuls, King Vidor e Joris Ivens; lançamentos futuros de Bergman (em Blu-ray!), do cineasta-revelação Joachim Trier (sim, é familiar...), do clássico também-com-os-testículos-no-sítio Don Siegel ou do mais chaplinesco dos neo-realistas italianos Vittorio De Sica...; e, para além das pechinchas tão apetecíveis, celebramos à nossa maneira lançamentos recentes de filmes de Billy Wilder, John Boorman e Abel Ferrara (também em Blu-ray). Muita coisa diferente, muita coisa excelente.

Em matéria de livros, podemos já anunciar que Março será um mês fortíssimo em raridades e descobertas: de uma edição rara de Débord até a um ensaio filosófico de Paul Verhoeven, valerá quase tudo. Lewis Hine (na fotografia) ou Didi-Huberman (na filosofia da imagem) terão livros acabadinhos de sair devidamente referenciados.

Carlos Pereira, um dos grandes (ex-)bloggers nacionais, estudante de cinema e, acima de tudo, um dos jovens realizadores por trás do excelente "Um Filme Português", dar-nos-á as suas recomendações filmo-livreiras.

Março promete, portanto.

Deus ex machina V: o "sair de si" do padre e do doutor


À direita, nos dois últimos frames, o fantasma do desejo do padre Léon Morin versus o fantasma de Mabuse e do seu programa do mal. À secretária, os dois destabilizam a imagem fixa do corpo sentado, que ouve, passivamente, "o outro". Não interessa que outro, porque o desejo de "sair de si" de Morin é quase igual ao desejo de "entrar no e possuir o outro" de Mabuse: absolutamente inescapável, mais minuto, menos minuto.

Os vencedores da Primeira Copa A Angústia do Blogger Cinéfilo (I): à baliza


James Benning, o meu Michel Preud'homme.

Foi o mais intransponível e concentrado guarda-redes da copa A Angústia do Blogger Cinéfilo.... O CINEdrio - não confundir com CINEdrio FC, aliás, também não confundir com CINEdrio SAD - já há muito vinha publicitando as suas capacidades nas suas várias rubricas:

Críticas:





O Cinema Revisitado:


Passagens:

Cirrus I, II e III



Foto-síntese:


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Contra o absoluto fim das actividades necessárias, contra o triunfo do consumo sonhado pelo animal laborans


Andrew Stanton, "WALL-E" (2008)

Um dos óbvios sinais do perigo de que talvez estejamos a ponto de realizar o ideal do animal laborans é o facto de que toda a nossa economia se tornou já uma economia de desperdício, na qual todas as coisas devem ser devoradas e abandonadas quase tão rapidamente como surgem no mundo, a fim de que o processo não chegue a um fim repentino e catastrófico. (...)
Quanto mais fácil se tornar a vida numa sociedade de consumidores (...), mais difícil será preservar a consciência das exigências da necessidade que a impele, mesmo quando a dor e o esforço - manifestações externas da necessidade - são quase imperceptíveis. O perigo é que tal sociedade, deslumbrada com a abundância da sua crescente fertilidade e presa ao suave funcionamento de um processo interminável, já não seria capaz de reconhecer a sua própria futilidade (...).

Hannah Arendt, A Condição Humana (1958), Relógio D'Água, 2001, p. 159

Agora é a tua vez de ser mister cinéfilo

(Still) Still de "Film socialisme" do ponta-de-lança JLG

Assistiu de bancada à Copa A Angústia do Blogger Cinéfilo...? Pois então, entre agora em campo e faça a sua equipa ideal com os nossos jogadores de sonho!

Isto é: esta á a sua vez de seleccionar a sua equipa ideal entre os jogadores de sonho (= os que chegaram às meias finais) que mais brilharam na Copa A Angústia do Blogger Cinéfilo no Momento do Penalty. Antes de votar, relembro-lhe a performance dos jogadores ao longo do torneio, dos oitavos-de-final para as meias finais e terminando - onde tudo termina, de facto... - na final.

FAÇA CLIQUE NO LINK E VOTE NO/NA MELHOR:






Caros adeptos, está nas vossas mãos serem misters (não deste género, mas deste género) de uma equipa de grandes autores cinematográficos. Peço-vos apenas duas coisas: primeiro, que procurem não repetir jogadores nas vossas equipas (Eric Rohmer, por exemplo, aparece em duas posições diferentes nas sondagens); segundo, que tenham em mente os atributos de cada jogador, devidamente dissecados por cada blogger participante, durante a primeira edição da nossa Copa.

As sondagens decorrem até dia 18 de Março (ATENÇÃO: Deadline Adiado para dia 25 de Março). Seja (ir)responsável e vote!

*- Por favor, vote duas vezes nesta sondagem.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O grande vencedor da primeira edição da Copa A Angústia do Blogger Cinéfilo no Momento do Penalty é...

... o CINEdrio FC!


Nas ruas, "libertam-se os fogos" e grita-se: CINEdrio! CINEdrio! (ah, o still é de "Ghosts of Mars", mal-amado filme do defesa esquerdo John Carpenter)

É caso para repetir aquilo que os jogadores de futebol vitoriosos tanto dizem nas flash interviews: "estamos todos de parabéns". Pois é: o CINEdrio entrou favorito, por estar a jogar em casa, e cumpriu com as expectativas depositadas na sua equipa atleticamente poderosa.

Eis o resultado do último confronto:


Pois bem, a taça da primeira edição da Copa A Angústia... fica em casa, com uma responsabilidade acrescida: tornar esta competição (ainda) mais apetecível a todos os bloggers cinéfilos para o ano. Com alguma criatividade, podemos fazer desta a competição mais original do mundo blogoESFÉRICO.

Não quero deixar de agradecer a todos os participantes, adeptos e, sobretudo, aos bloggers bem-dispostos que se juntaram a este tresloucado exercício de cinefilia. Como diz o povo que mais sabe de bola, "valeu!" ou "show de bola!"...

Entretanto, e até lá, cabe ao adepto continuar a votar, mas, desta feita, não em equipas, mas nos SEUS jogadores ideais para cada posição no campo. A sondagem irá reunir os jogadores das quatro melhores equipas desta copa e dará ao adepto a possibilidade de fazer com o seu voto "a equipa de sonho das equipas de sonho". Fiquem atentos!

The Artist (2011) de Michel Hazanavicius


Na minha opinião - tenho mesmo de começar esta crítica assim? -, este filme não lança qualquer mote nem chega a tomar o pulso a uma nova cinefiliação, nem tão-pouco traça os caminhos para a descoberta ou redescoberta dos grandes clássicos mudos; pelo contrário, este é como que a última versão daquela gama de comprimidos, de uma dose só, que o espectador - o mais indolente e coitadinho - toma para se assegurar que lá bem para trás, na história do cinema, não ficará nada por metabolizar*. "The Artist" compila e joga habilmente com todos os clichés possíveis da "arte do mudo"; é por isso a mais recente "última pedra" sobre as ruínas de Fairbanks, das irmãs Gish, de Gloria Swanson, de Harold Lloyd, de Chaplin e não a primeira pedra lançada para a construção de algo novo. Nada de novo, aliás, sai daqui, sem ser apenas a boa disposição decorrente da "inteligência do produto".

O preto-e-branco e o mudo são parte do mesmo gimmick, que descinefiliza mais do que é causa ou efeito uma nova cultura cinéfila ou de uma arqueologia cinéfila emergente - e daqui envio um muito sentido bem-haja aos críticos e cinéfilos que ainda acreditam no Pai Natal! "The Artist" é mais um produto da pós-modernidade: oferece o cinema mudo para o matar no exacto momento do consumo; fá-lo, contudo, acriticamente. Trata-se, portanto, de um filme que só vale a pena ser visto como o objecto inconsequente que é, algo que não o torna imediatamente num mau filme, mas apenas num filme que não se reproduz numa verdadeira estética.

Espanto-me por isso com todos os comentários que andam para aí a poluir o ar e a blogosfera com anúncios vistosos sobre as "grandes tendências" que este filme encerra - ele, que neste momento só quer levar o raio dos Óscares para casa, caramba! No meu cansaço tenho de ser franco: haver quem gaste latim neste tipo de formulações lapidares é que é sintomático de que, por vezes, temos ao nosso dispor demasiado tempo para escrever e pouco tempo para pensar, isto é, falta a alguma crítica - profissional ou não, o que conta é a subjugação à disciplina da quantidade e da velocidade - ganhar distância e aprender a relativizar face ao que tem sido a evolução da paisagem audio/visual (= uma história cheia de meteoros mediáticos cujo impacto é zero, ou, vá lá, cujo impacto se resume apenas a um tempo bem passado, mais concretamente, duas ou três gargalhadas e uma pequena lição não de cinema, mas da história do cinema em modo once upon a time... para adultos).

Também está claro que não posso concordar que este filme anuncie - ou invente! - uma terrível "estética do simulacro" - isso seria, a meu ver, ou levá-lo demasiado a sério ou, muito basicamente, pôr de pernas para o ar a história do cinema dos últimos quarenta anos. "The Artist" é um pedaço de cinema-cinema que diz tanto sobre os nossos tempos quanto, com outras valências cinematográficas que não importa agora analisar, um "The Good German" de Soderbergh ou as falsificações clássicas dos Coen. Será menos corajoso que o nomeado para zero Óscares "Juha" de Kaurismaki- este procurava, de facto, ir além do mero exercício, para atingir um "estilo" - e estará a milhas dos Bogdanovich "revivalistas" - estes produziram uma nova maneira de ler o cinema pelas luzes do passado; abriram de facto caminhos a uma arqueologia cinéfila que não se limitava a renovar as suas colecções de cromos mas a recozinhar, assumindo o risco da total dissolução, a massa de que o passado se servia.

O filme de Hazanavicius levará mais à letra a fórmula "todo o cinema num comprimido", e isso poderá ser "mais um" sinal do modo como lidamos hoje com a nossa memória imagi(n)ária, mas daí a constituir-se como produtor de algo "subitamente novo" vai um passo de gigante. Também não há nada de "irreversível" - adjectivo catastrófico empregado por João Lopes - nos efeitos desse comprimido, visto que os estragos só se farão sentir em quem, por assim dizer, já estava atacado pela gripe bem antes das luzes se apagarem e o filme começar**.

"The Artist" é uma colecção de caricaturas, uma "compressão" de um mundo - o do mudo e o da passagem para o sonoro -, que elimina qualquer possibilidade de aventura estética além de si. Diverte na caricatura, comove-nos - sem saudosismos, é verdade - quando devolve o silêncio às salas, mas apenas se oferece como uma one way trip... Quando descobrimos no baú empoeirado do sótão as roupas da trisavó, é giro enquanto elas se vão sucedendo umas às outras, como um velho álbum de fotos, mas depois arrumá-las de volta no dito baú constitui um esforço tão ou mais sujo e inglório do que atirá-las para o lixo. Em "The Artist", estou em crer, o cinema mudo é um pouco como essas deslumbrantes roupas da trisavó que, mais cedo ou mais tarde, acabam no lixo, leia-se, caem no ou regressam ao esquecimento.

*- O filme não produz discurso para tanto, mas apetece brincar e dizer que à custa de "The Artist" o editor dos "1001 Filmes para Ver Antes de Morrer" já poderá tirar os poucos filmes mudos - e já agora também "Singin' in the Rain", "Sunset Boulevard" ou até "Modern Times" - que tem vindo a incluir nesse menu fast-food de cinema: afinal, para quê maçá-lo com velharias imperfeitas, se podemos sintetizá-las em hora e meia de grande diversão? Nem parece que está a ver um mu
do, né verdade?

** - Por exemplo, pessoas para quem "1001 Filmes para Ver Antes de Morrer" é o seu manual de boas práticas cinéfilas.

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